COM A ATUAL POLÍTICA ATÉ PACHECO PEREIRA É DE ESQUERDA
Está-se
já a tocar na liberdade”
Por José Pacheco Pereira, Público 27/10/12
“Voltemos
ao aspecto mais perigoso do assalto actual à liberdade, o confisco colectivo
que está a ser feito aos pobres e à classe média.
No débil pensamento que por aí circula do lado do poder, as criticas ao Governo
só podem ser explicadas ou por ódios pessoais, ou por interesses individuais ou
de grupo, ou por oposição política e ideológica, neste último caso não se sabe
bem a quê. Com o plano inclinado em que está o actual poder, a raiva e o
ressentimento crescem exponencialmente, e turva-se muita cabeça. Mas
enganam-se, ninguém de seu perfeito juízo encontra agrado no actual estado de
coisas, que tem a virtude de ser mau para quase todos. Quase todos.
Por mim, estou cansado de falar do Governo e todas as semanas quando começo a
escrever este artigo, o que me apetece é falar de outras coisas, mais
saudáveis, mais interessantes, melhores do que a miséria que é a governação
portuguesa e o cortejo de falácias circulantes que a protegem, bastante mal
aliás. Eu agradecia esse silêncio, e, certamente, o Governo também, mas não há
semana em que não haja um imperativo qualquer que me obriga a voltar ao mesmo.
E volto ao mesmo por obrigação e não por gosto, porque o catálogo das nossas desgraças
não é propriamente o mais vibrante exercício.
É que cada semana que passa, a gente pensa: "Bom a coisa já acabou, a
carga do martelo-pilão já caiu forte e feio, os malefícios na economia e na
vida de cada português já cá estão e são para ficar, a miséria que se vai
suportar já está estabelecida e estabilizada por muitos anos, e a quota de
asneiras já foi abundantemente ultrapassada". Agora, as coisas podiam
parar, com tanto estrago já feito, uma espécie de descanso hegeliano da
História, uma Veneza na fase da decadência, corrupta e miasmática estagnada
para um ou dois séculos, até que um Napoleão qualquer lhe bate à porta.
Pois sim! No dia seguinte, aparece mais uma absurda proposta, uma manipulação
da opinião, uma afronta colectiva, uma incompetência gritante, uma selvajaria
social, e, pior que tudo, um abuso de poder. E esta constância do mal e da
asneira é em si mesma um problema diferente, porque não só funciona como um
fortíssimo irritante social - parece que o Governo deseja uma qualquer sublevação
-, como faz aquilo que começou como uma política errada, incompetente e sem
sentido, transformar-se numa dissolução da democracia e das liberdades. E isso
é outro "campeonato", outra história. É o abuso do poder que me
parece hoje mais preocupante porque se está neste momento a tocar na liberdade,
a tirar a todos, indivíduos, sociedade, nação, as liberdades escassas, mas
reais, que temos desde os dois 25, o de Abril e o de Novembro.
O caminho para a servidão começa no confisco da propriedade por via fiscal. É
em primeiro lugar a expropriação da propriedade do salário e do trabalho, mas
também o de todas as outras formas de propriedade, privando os indivíduos e a
sociedade de terem um espaço privado de "posse", que é em primeiro
lugar garantia da sua liberdade e de controlo sobre a sua vida. Perdida essa
liberdade, o reino da necessidade torna-se despótico, sem serem precisas
polícias políticas, porque basta a utilização de leis iníquas e de
procedimentos autoritários para obter uma sociedade em que a liberdade é
residual. E não me venham dizer que tem que ser assim, porque perdemos a nossa
soberania, porque dependemos de credores, porque nunca tivemos qualquer
liberdade, mas apenas a ilusão dela. Tretas e tretas perigosas, porque não
conhecem limites. Servem para tudo e justificam o injustificável.
Voltemos ao aspecto mais perigoso do assalto actual à liberdade, o confisco
colectivo que está a ser feito aos pobres e à classe média, com argumentos
económico-morais, que nem são nem boa economia, nem moralidade nenhuma. Um
velho bolchevique executado por Estaline, Preobajensky, teorizou nos anos vinte
do século passado sobre aquilo a que chamou a "acumulação socialista
primitiva", uma extensão de um conceito marxista sobre o capitalismo,
aplicado ao momento inicial de construção da economia soviética. Como estes
homens não tinham medo das palavras e estavam num momento adâmico da história,
ele acrescentou à fórmula a "acumulação socialista primitiva, isto é, o
roubo." Na verdade, o roubo do roubo, no sentido em que Proudhon tinha
definido a propriedade: a "propriedade é o roubo".
A utilização da palavra "roubo" é interessante, porque se em Proudhon
ela é um julgamento negativo com valor moral - os detentores de propriedade
roubaram-na -, para Preobajensky ela é um facto natural, um direito
revolucionário, uma expropriação necessária, um retorno da sociedade ao estado
natural anterior à propriedade, ou seja, um "ajustamento". Passos,
Gaspar e Borges estão próximos de Preobajensky, tem que se fazer o
"ajustamento", faz-se. Todas as medidas necessárias serão tomadas,
incluindo o confisco da propriedade dos mais pobres, porque eles têm o defeito
de serem muitos e não terem as protecções que os mais ricos têm. Mais ainda: o
dinheiro nas mãos dos pobres destina-se a necessidades pouco dignas, comer, ter
casa, andar de transportes públicos, ou seja, alimentam a economia errada -
restaurantes do vão de escada, empresas que vendem tijolos, o Lidl, as empresas
públicas como a CP e a Rodoviária, os comunistas da Transtejo e da Soflusa, as
lojas dos trezentos, os chineses. Não só são pobres, como são pouco produtivos,
o seu trabalho é caro de mais, têm muitos subsídios que não deviam ter, vão
acabar por ter uma reforma excessiva, e, se não tiverem trabalho, vão pesar no
orçamento. Em suma, são preguiçosos, mal habituados, e não são produtivos, a
não ser enquadrados num modelo de mão-de-obra barata, e vigiados pela estrita
necessidade. Pelo contrário, o dinheiro dos ricos é produtivo, faz andar o
país. Aqui o confisco é débil e nominal, feito com toda a prudência para não
bloquear o investimento, que não existe, e para impedir que os capitais se
desloquem para fora, o que obviamente acontece.
Esta forma de "acumulação socialista primitiva" assenta numa teoria
moral do "viver acima das suas posses" entendido como uma dívida de
origem difusa mas de culpa colectiva. O "ajustamento" seria assim um
mecanismo forçado a obrigar o devedor, cada português, a ser desapossado de uma
parte muito significativa do seu salário e dos seus bens para "pagar a
dívida", resultado de ter andado vários anos a "viver acima das suas
posses".
É apenas uma imposição dos credores? Não só, é também a concepção económica do
triunvirato Gaspar-Passos-Borges, para quem o programa do Memorando é o
"seu" programa. O resto é "massa de manobra" e é
expendable. Não se iludam por isso com esta recente série de declarações sobre
como é bom "livrar-nos da troika" e retomar a "soberania
financeira", porque eles pensam mesmo que o melhor que aconteceu a
Portugal foi encontrar na intervenção estrangeira a legitimação para cumprir um
programa que claramente desejavam e consideram virtuoso.
Já repeti muitas vezes uma análise aristotélica sobre quanto dinheiro é preciso
ter para se ser um homem livre. Aristóteles fez as contas, e nós podemos
igualmente fazê-las. Penso aliás que esta é uma forte defesa filosófica da
liberdade face ao comunismo de Platão. Mas a lição é que a posse é liberdade,
dá liberdade, defende as pessoas da servidão. Se se transformam homens livres
em proletários, que nada têm a perder a não ser as suas grilhetas, estes
começam a comportar-se como proletários, coisa que mesmo a troika já teoriza
nos seus documentos e que o FMI trata sob o manto diáfano da "fadiga da
austeridade". Seria bom não pagar para ver.
Portanto, o primeiro e fundamental abuso do poder é retirar aos homens e
mulheres o fruto do seu trabalho, expropriá-lo com os impostos e com as
descidas de salários, ou com o desemprego pago na miséria. Não é comunismo, nem
esquerdismo, nem socialismo, é doutrina social da Igreja, é pensamento
social-democrata, reformista e, pasmem, liberal, liberal das liberdades. Tem a
ver com a recusa do roubo da escassa propriedade dos pobres, da mediana
propriedade dos que deixaram nas últimas décadas a pobreza de que os seus pais
ainda se lembram com medo.
Contra eles, os pobres, os preconceitos de sempre, contra a parte "porca,
suja e má" da sociedade, a que se soma hoje o ataque à nossa remediada e
recente classe média, por uma espécie de preconceito antiburguês revisitado
pelos nostálgicos de um mundo bem-nascido da "velha riqueza", eles
próprios completamente parvenus e pequeno-burgueses até à medula. Contra todos
aqueles que podiam ser a alavanca de qualquer progresso económico e social pela
sua posição-charneira da sociedade, os únicos que podem "democratizar a
economia", ergue-se uma sanha peculiar, por parte de uma burocracia
partidária que beneficia das prebendas do poder político, mas que para escapar
à crise se torna serventuária dos de cima, sempre em cima, intocáveis na sua
manipulação do establishment, tratando os criados por tu.
Este é o primeiro, mais fundamental e mais grave abuso do poder. Mas há mais.
J. Pacheco Pereira"