sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008
verdades
Alice Vieira , Escritora
A minha tia Amélia, nada e criada numa aldeia transmontana para lá do sol
posto, foi abandonada pelo marido nos alvores da sua mocidade. De quem a
culpa, nestas coisas é quase sempre difícil encontrar a verdade, que até nem
vem para o caso. O que é facto é que, muitos anos depois, quando o dito
marido morreu, a segunda família do senhor achou por bem convidá-la a
comparecer à leitura do testamento do falecido.
Muito séria, no meio de gente que nunca tinha visto, lá foi ouvindo as
últimas vontades do morto que não queria que chorassem por ele, que não
queria flores no enterro, que queria que o seu nome fosse perpetuado numa
placa de uma rua da aldeia, que queria que todos os seus descendentes
guardassem o seu apelido, que queria isto e mais aquilo - até que a pobre da
tia Amélia se levantou, suspirou fundo, dirigiu-se para a porta de saída e
disse, no seu português de mulher do campo: "Ordes", "ordes" é que ele
deixou!"
Todos os dias me lembro da minha tia Amélia, quando leio os jornais e lá vem
mais uma "orde" da ASAE -- mais uma proibição de qualquer coisa que se fazia
e agora já não se pode fazer, mais uma proibição de utilizar o que até agora
se utilizava mas que já não se pode utilizar, e por aí fora. E dou comigo a
repetir, "ordes", "ordes" é tudo o que eles sabem dar!"
Acho que nunca recebemos tantas ordens como nestes últimos tempos. Nunca se
proibiu tanta coisa como nestes últimos dias.
E cautela, meus amigos! Olhem que se começa por proibir a beata e a colher
de pau-e acaba-se a proibir a livre troca de ideias!
E tudo feito, é claro,a pensar no nosso bem! Nada de contaminações
perigosas, tudo asséptico, tudo muito, muito mas muito puro. ( Houve um
tipo, aqui há uns anos, coitado, que também só queria a pureza da raça, e a
história acabou muito mal.) e lá dizia um escritor famoso, "não concebo
melhor definição de inferno do que um mundo perfeito".
Todos os fundamentalismos dão para o torto, não tenhamos dúvidas. Resta
saber é se, no fim de tudo, ainda iremos a tempo de nos endireitar.
Alice Vieira escreve no JN, quinzenalmente, aos domingos
--
"Quando não se sabe para onde se vai qualquer estrada nos leva até lá..."
- in o gato de Alice no país das maravilhas -
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