quarta-feira, 10 de abril de 2013

ABRIL

Artigo publicado no "Le monde diplomatique"

por Sandra Monteiro
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> Chegamos a Abril com uma dupla urgência. Por um lado, reconstruir as
> formas de organização da sociedade que, desde a instauração da
> democracia, vinham mostrando ser as mais capazes de melhorar as
> condições de autonomia, igualdade e liberdade da grande maioria dos
> cidadãos (Estado social e serviços públicos, direitos e leis laborais,
> políticas de coesão territorial). Por outro lado, construir as formas
> de integração, europeia e internacional, da economia e das instâncias
> políticas do país que melhor possam reverter o rumo de empobrecimento
> e subdesenvolvimento prolongados para o qual estão a ser empurrados
> cada vez mais países de uma União Europeia disfuncional e, dentro de
> cada país, um crescente número de cidadãos das classes médias e
> populares.
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> Chegamos a Abril com uma dorida certeza. Ela cresce a cada revelação
> da escalada dos números do desemprego, da precariedade e da pobreza,
> bem como do défice e da dívida. Que certeza é essa? A de que não
> haverá um fim para esta crise, e muito menos um fim benigno, com este
> ou qualquer outro governo que decida, com semblante convicto ou
> contrariado, impor políticas de austeridade, aceitar as condições de
> financiamento ditadas pelos credores e abdicar de reivindicar os
> instrumentos – nacionais e europeus – de política económico-financeira
> que permitam governar a favor da maioria dos cidadãos. Um governo que
> não actue simultaneamente na recusa da austeridade, na reestruturação
> da dívida e na colocação de condições de arquitectura europeia não
> conseguirá resultados muito diferentes dos actuais. E à crise
> económica e social, com todos os fenómenos de corrosão e
> disfuncionamento que ela traz a uma comunidade, só juntará uma
> crescente crise política. Quanto tempo pode a democracia resistir à
> constatação, muito agudizada pela crise, de que nos lugares de decisão
> não há quem represente os interesses dos cidadãos, mas apenas os dos
> credores financeiros? Quantas vezes poderão os governos, em campanha
> ou em funções, afirmar que defendem valores e princípios que
> garantiriam uma vida digna aos povos, se não consubstanciarem essa
> defesa em políticas que melhorem as condições materiais de vida? E o
> que vamos nós fazer para que esta crise da democracia representativa
> resulte num aprofundamento da democracia e não no seu contrário?
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> Chegamos a Abril com uma trabalhosa exigência. Temos de passar a
> participar mais na vida pública, e fazê-lo em todos os lugares onde
> são tomadas decisões sobre a nossa vida comum. Colocarmo-nos esta
> exigência liga-nos logo a inúmeros combates, porque implica criar um
> quotidiano em que tenhamos tempo e condições para a participação, da
> vida laboral aos transportes, do sistema educativo aos apoios às
> famílias. Mas, além disso, a participação é um meio para conhecer a
> realidade em que nos movemos como palco de interesses conflituais,
> desde logo os de classe, e para influir nas correlações de forças.
> Confiámos durante demasiado tempo a gestão da República a elites e
> representantes de interesses particulares que enredaram o Estado numa
> intrincada teia de negócios, corrupções e favores privados, ao mesmo
> tempo que convenciam os cidadãos de que privado é sinónimo de mais
> eficácia e eficiência. Com a crise a desmascarar esta mentira e a
> mostrar-nos como nos saem caras as concessões e privatizações
> neoliberais, é altura de usarmos a participação para potenciar a
> articulação de lógicas não lucrativas, associativas e não mercantis
> entre o sector público e o sector da economia social, numa simbiose
> que contrarie as lógicas privadas. E que alimente a experiência que
> cada cidadão tem do que vê funcionar bem ou mal. É aí, sem defesas
> acríticas nem ataques meramente ideológicos, que podemos proteger o
> que a todos pertence e beneficia.
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> Chegamos a Abril com um imperativo partilhado. A imensa degradação das
> condições económicas e sociais dos últimos anos trouxe consigo a
> consciência de que estamos a ser governados, em Portugal e na Europa,
> através de políticas desastrosas para os povos. O caminho feito na
> consensualização de análises e de propostas alternativas é já
> considerável, mas não está esgotado. Quebrado o assentimento ao
> pensamento único, mesmo na sua versão austeritária, e compreendida a
> pluralidade de lógicas de sociedade e de escolhas políticas, cabe-nos
> construir as articulações entre todos os denominadores comuns com que
> nos identificamos. Não se trata de lançar apelos a outrem para criar
> consensos ou alianças, seja no campo da luta social ou da luta
> política, como se delegássemos a nossa própria acção e nos sentássemos
> no conforto de um sofá protegido das dificuldades concretas de fazer
> aquilo a que apelamos. Trata-se, pelo contrário, de termos essa
> atitude de definição e articulação do que é comum em todos os espaços
> em que intervimos, com todos os espaços em que intervêm outros com
> quem partilhamos pontos de vista alternativos ao suicídio
> austeritário. Até onde pode levar-nos esta atitude em termos de
> aprofundamento da democracia, da igualdade e da autonomia? Só
> saberemos fazendo. Mas sabemos que, sem ela, todos os dias perdemos
> mais um pouco da nossa liberdade.
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> Chegamos a Abril com um peso resistente. O de quem vive penosamente e
> sabe que quase tudo terá de ser construído e reconstruído. Vai-nos
> faltando a esperança, o entusiasmo e a festa que associamos à vida que
> Abril abriu. Mas será pouco, isto de sabermos o que não podemos mais
> suportar e o que temos de começar por mudar? Ou isto de decidirmos
> encontrar-nos e sermos sujeitos dessa mudança? Também noutros momentos
> da nossa vida colectiva nos unimos sem vislumbrar completamente os
> contornos da sociedade que viria depois. Em ditadura, as bandeiras
> mobilizadoras também estavam mais tingidas de miséria e sofrimento do
> que do entusiasmo que potencia o movimento. Mas pusemo-nos a caminho,
> informámo-nos, partilhámos o que descobrimos, discordámos em muitas
> coisas, mas apoiámo-nos para edificar outras. Por muito que associemos
> a festa, a que comemoramos, apenas a estas edificações, não terá ela
> começado mal recusámos a subalternização e nos encontrámos para acabar
> com a vida de miséria e sofrimento que era imposta a um povo?
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> Este presente em que lutamos faz já parte da festa a comemorar. O
> presente só é estéril de futuro quando abdicamos de intervir no
> presente. Chegados a Abril, recuperemos esta nossa própria inscrição
> no tempo, para que os ardis da memória, hipervalorizando os
> bem-sucedidos pontos de chegada, não nos façam desvalorizar os
> processos que permitiram atingi-los, nem o árduo trabalho que nos é
> exigido depois de os termos atingido. Como bem mostra esta crise,
> pagamos sempre caro pelos dois erros.
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> domingo 7 de Abril de 2013
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