domingo, 27 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO

UM AERTGO DA AUTORIA DE VARELA PIRES ( MÉDICO E ESCRITOR
JOSÉ SARAMAGO
(1922-2010)

UM HOMEM RELIGIOSO

Por Varela Pires

O desaparecimento de um grande escritor como José Saramago, acarreta sempre, para além de uma lamentável perca para a Cultura Portuguesa e para o prestígio do nosso País, uma oportunidade para que possamos reflectir sobre o homem, sobre o seu pensamento - que nunca deixou de manifestar frontal e abertamente - e sobre a sua obra literária.
Muitos outros, com mais conhecimento, competência e mais propriedade, essencialmente críticos literários, estudiosos da Literatura Portuguesa ou da Literatura de Língua Portuguesa, se debruçarão sobre as características da sua vasta obra literária, e sobre a figura social e politicamente controversa, a quem foi atribuído em 1998 o Prémio Nobel da Literatura, e até ao presente o único Nobel atribuído a um português nessa área da escrita.
José Saramago nasceu para o êxito literário depois de já cumpridos 50 anos de vida.
Não se nasce escritor, não se “aprende” a ser um grande escritor, ninguém se impõe como escritor célebre, se não souber erguer uma obra literária que cause admiração, que não irradie genialidade, fogo, contradição, que não traduza por palavras uma singular arte de contar, uma notável maneira de pensar.
Com José de Sousa Saramago sucedeu a partir de determinado momento da sua vida, uma reviravolta curiosa e praticamente imprevisível.
Depois de obter, como estudante/trabalhador, o curso de Serralharia Mecânica na “Escola Industrial Afonso Domingos”, entra no mundo do trabalho com as qualificações que as suas habilitações académicas lhe tinham fornecido, obtendo um modesto emprego nas Oficinas do Hospital de São José, em Lisboa, e mais tarde, continuando como funcionário da antiga Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria Cerâmica, e posteriormente também da Caixa de Previdência do Pessoal da Previdente.
Apercebe-se, como muitos seus companheiros de trabalho, nós diríamos, como muitos portugueses, da situação política que Portugal atravessa no período em que Salazar governa, e a sua polícia política persegue todos quantos se lhe opõem.
A esperança de que o regime político mudaria Portugal após a vitória dos Aliados na Guerra Mundial de 39/45, esfumara-se. Muitos portugueses não se conformam, especialmente inúmeros jovens. Assim, em 1949, Saramago é irradiado do seu emprego por ter apoiado a candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, ficando numa situação economicamente difícil. Sem emprego certo, envereda pelos jornais como colaborador esporádico, pago à peça, quase que esmolando ocupação remunerada. Dois bons amigos conseguem-lhe trabalho regular e retribuído, como tradutor na Editora “Estúdios Cor”, onde chega a ocupar a posição de Editor principal.
Mas, nunca mais largaria o jornalismo, muitas vezes assinando os seus artigos com pseudónimo. Em 1972, torna-se jornalista profissional. Já trabalhava assiduamente no extinto “Diário de Lisboa”, dirigido por aquela boa alma que se chamou Joaquim Manso.
Com a Revolução de Abril de 1974, assume no início do ano seguinte as funções de director-adjunto do “Diário de Notícias. No exercício destas funções, veio a ficar tristemente ligado - no conturbado período político do PREC (Processo Revolucionário em Curso) - ao saneamento de cerca de 30 conceituados jornalistas, grandes nomes do jornalismo português, por estes terem denunciado publicamente a falta de pluralismo político e de liberdade de opinião dentro da Redacção do jornal. Dessa época polémica da vida portuguesa, e dessa sua atitude de intolerância que nunca foi esquecida, tal o impacto e a veemente injustiça que levantou, a sua figura nunca até hoje se pôde desligar biograficamente.
A seguir, através do Movimento Militar de 25 de Novembro do mesmo ano (1975), após a vitória da facção política democrática do MFA (Movimento das Forças Armadas) que contrariava a breve Ditadura Gonçalvista, é afastado do “Diário de Notícias” e fica no desemprego.
Ao lado da escritora Isabel da Nóbrega, enceta por esse tempo uma viagem a Portugal, que ficaria documentada em livro, num belo livro ilustrado fotograficamente. Se conhecia Portugal, ficou a conhecê-lo metro a metro.
Ao mesmo tempo, a sua vida de jornalista e de escritor sofre uma curiosa transformação que o levará a publicar diversas livros profundamente conhecidos de todos, tendo alguns deles constituído um êxito editorial extraordinário, como “Levantado do Chão”, “Memorial do Convento”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (em que se revela profundo admirador de Fernando Pessoa e da sua obra), “A História do Cerco de Lisboa”, “todos os Nomes”, e “Ensaio sobre a Cegueira”, para só mencionar as de maior repercussão, e as que mais edições tiveram e as mais largamente traduzidas, em inúmeros países.
José Saramago toma simultaneamente ao vivo o partido de muitas causas nobres, a “sangrar” por esse planeta, em especial apoiando a independência de povos do terceiro mundo, espezinhados por ditadores “de faca e alguidar”, povos com um longo historial de sofrimento e vítimas. Então, a figura do escritor Saramago agiganta-se, ganha maior relevo e passa a ser mais respeitada e conhecida internacionalmente. Torna-se cidadão do mundo!
Segue-se a atribuição do Prémio Nobel pela Academia Sueca, galardão que lhe é conferido com toda a justiça, quanto a nós. Embora - como não podia deixar de ser - a contestação à sua figura de cidadão do mundo e de escritor livre e independente lhe granjeie alguma animosidade e provoque polémica e contradição. Tal como outras figuras de dimensão mundial foram sinal de tenaz e forte contradição, o escritor português não escapou às diatribes, aos ataques verbais e escritos que lhe lançaram, e a que respondeu com frontalidade e coerência sempre que lhe apeteceu, as mais das vezes assumindo o papel de provocador incansável.
Porém, ninguém bate em fantasmas, e só é atacado aquele que tem valor. Mesmo admitido a velha e exacerbada batalha que os invejosos lhe moveram, José Saramago tinha valor, sem sombra de dúvida. Contestado, sim, mas uma figura brilhante, um grande escritor, um cidadão participante em tudo o que acontecia pelo mundo, um homem cujo nome não pode ser apagado da nossa História.
Nesta sua fase de impressionante e veloz criação literária, produz uma vasta obra, incluindo diários. Publica cada ano pelo menos um livro, o que lhe confere assinaláveis êxitos literários. E a par dessa intensa actividade publicista, processa-se dentro de si um admirável e profundíssimo período de reflexão, uma espécie de peregrinação interior, de que só tornará pública através da sua escrita uma pequena parte.
Soezes, por vezes ofensivos e agrestes, quase roçando a boçalidade, surgem da sua parte ataques ao Cristianismo, principalmente à hierarquia da Igreja Católica, ao Vaticano, ao Papa, à Bíblia, e a outras seitas cristãs, intervenções que fazem aumentar de tom a contestação à sua figura, e com ganhou alguns adversários (de estimação) e até inimigos, principalmente no mundo cristão. E mais. Na realidade, José Saramago nunca gostou de religiões, quaisquer que elas fossem, regressassem donde tivessem vindo, visassem a felicidade do homem ou a penitência, o pecado, o castigo, o fundamentalismo espiritual.
Muitos o acusaram que provocando escândalo, com determinadas análises e conclusões infundamentadas à Bíblia e ao rito católico, e “ofendendo” os que confessavam a Fé cristã, mais livros venderia, mais a sua figura era falada, mais a sua obra literária era alvo de atenção, mais se lembravam de si e consequentemente seria tomado como alguém com “coragem” para encabeçar um movimento de contestação à Instituição da Igreja.
Nunca apoiámos esta tese. Duvidámos sempre que o tivesse dito ou feito com essa intenção. Saramago era muito inteligente. Não era homem para usar desses velhos truques. Nem precisava.
Conhecemos pessoalmente José Saramago, num tempo que ninguém dava “nada” por ele como escritor, ou melhor, não o pressentiam como alguém capaz de obter êxito como romancista ou ensaísta. Trabalhámos durante algum tempo, quase lado a lado nas Redacções dos jornais (“Diário de Lisboa” e “Diário de Notícias”) por onde passou, passámos. Conhecemos um pouco do pensamento deste grande escritor e cidadão dotado de uma excepcional nobreza de carácter. Claro, que ninguém conhece ninguém, profundamente. E é verdade.
Mas, agora, que infelizmente já não o temos entre nós, e uma longa vida, uma vida inteira é passada, consideramos que José Saramago foi um homem profundamente crente e religioso, não o que se chama vulgarmente professo de uma determinada Fé, mas um homem em procura de Deus, de um deus que não sabia se existia, ou sequer que tinha existido, todavia de um deus que enchesse de conforto, paz, esperança, confiança, a sua alma dilacerada, sofrida, amolgada pelos encontrões que a vida lhe ofereceu, imerso nas inúmeras ocasiões que se auto interrogou, ou que interrogou os mais sobre os enigmas da existência que o apoquentavam.
José Saramago desaparece da vida a 18 deste mês de Junho. Despede-se amargurado, inconsolável, com a mais grata lembrança da sua pequena e querida aldeia, levando consigo a mais emotiva recordação do seu querido avô materno, com a mais saudosa recordação da sua infância, passada na Azinhaga do Ribatejo.
Morreu José de Sousa Saramago ((1922-2010).
Bastas vezes, ele clamou por religiosidade, inúmeras ocasiões procurou o alfa e o ómega da vida, os porquês e as razões, a grande Razão da existência, o mistério da vida. Neste deserto de indiferença, só lhe “ofereceram” a fé vulgar, instituída e institucionalizada de que os outros comungavam, uma religiosidade oficial que não o satisfazia, que nunca o satisfez, preencheu ou sequer pensou adoptar. Até ao último minuto.
Neste veloz mundo de distraídos e de “irmãos” desconhecidos, ninguém o compreendeu, ou ninguém o quis compreender! Preferiram sempre atacá-lo, ou lisonjeiramente adulá-lo. Felizmente, que a sua lucidez rejeitou sempre que o colocassem no andor, o levassem ao som de hinos em procissão, o incensassem no altar em que quiseram colocá-lo, por vezes à pressa, preocupados com o social e o politicamente correcto.
Contudo, tivemos entre nós – talvez sem nos apercebermos - todo este tempo, em que ele nos acompanhou, um homem que acudiu pelo nome de José Saramago, um homem ansiosamente em procura de uma fé, de um deus, de uma religião de que necessitava como ser humano, e que nunca encontrou, infelizmente.
Nesta dura e ingrata caminhada da nossa existência terrena, tivemos o privilégio de conhecer e viver, quase que lado a lado, como um Homem profundamente religioso – José Saramago.


VARELA PIRES

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