quarta-feira, 30 de junho de 2010

UM RETRATO DO NOSSO PORTUGAL...

Escrito poor Josá Saramago

CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ*


*Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito.
Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.
Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado,
meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los.
Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte.
Trave da tua casa, lume da tua lareira - sete vezes
engravidaste, sete vezes deste à luz.*


*Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de
literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de
palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais
vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos
casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes
ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que
assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um
som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da
fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da
igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas
contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos
claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi
rir ninguém.*


*Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas
não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo.
Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando
nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz
parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos
se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão
calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos
brancos, partidos pelo peso dos carregos - e continuo a não entender. Foste
bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te
roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê
e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu
pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti - e sem
mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.*


*Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não
são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não
acusas - e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na
soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de
que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das
árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa
anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu
tenho tanta pena de morrer!".*


*É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua.*

* *

*José Saramago*

2 comentários:

Guida Simão disse...

Meu amigo claro que faz verter uma, duas e mais umas quantas lágrimas...
Eu adoro Saramago, e a sua escrita toca-me muito. Parabens Nuno pelo teu bom gosto.
Beijos
Guida

Unknown disse...

Força, Nuno. Que nunca te falte o ânimo de resistir ao marasmo reinante, ainda por cima com esta história linda.
Grande abraço.
Vasco