sexta-feira, 19 de novembro de 2010

CARTA ABERTA

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CARTA ABERTA AOS PORTUGUESES – 2
08-11-10



Há dias em que gostaria de ser eremita, fugir por aí pelas autoestradas que foram construídas para o desenvolvimento do interior, esse interior desgraçadamente esquecido, destinadas agora a cruzar o vazio, a levar-nos às deleitosas regiões do campo para recordarmos o balido das ovelhas, o mugir das vacas, escutar o murmurinho dos ribeiros e o vento sussurrando nas copas dos pinheiros, tudo isto, mais um aspeto que não podemos esquecer pela sua importância: facilitar os indígenas a escapulirem-se da terreola mais depressa que antes. As tais fábricas que deveriam desenvolver as campestres regiões tornaram-se numa miragem como a dos desertos quando o viandante os cruza meio morto de sede, e assim, resta-nos o consolo das referidas “vias de desenvolvimento” servirem quase exclusivamente para o que já referi. No entanto não desejo deixar passar em claro a boa intenção de as construir, porque até Tito Lucrécio Caro, o poeta romano, sabia que a razão pode curar todos os males da humanidade, e foi decerto a ela que recorreram os nossos governantes quando decidiram construí-las. Está a ver, amigo leitor, como podemos cair facilmente nas garras da ingratidão e da injustiça? Voltando à vaca fria, já que falei do campo, pego no carrinho, vou por aí fora, e mal me precato lá estou de dedo estendido a carregar no botão do autorrádio, eu que queria fugir das notícias, do diz-que-diz, das intrigas, das malévolas insinuações, e que sem que o deseje a mente quer regressar à “civilização” enquanto o corpo foge para a tranquilidade chilreante das serras. Afinal em que bicho me tornei desejando o que momentos antes desprezava, e que, para ser sincero consigo, querido leitor, começo a suspeitar estar a perder o controlo da razão, a dar o dito por não dito, e a fazer o que antes rejeitava. Envergonhado com a minha incoerência retraio o dedinho, dou um soco no volante, era em mim próprio que deveria desferi-lo, e ensaio uma musiquinha erudita do Tony Carreira para alegrar a viagem. Quando estiver no campo hei de refletir sobre o meu comportamento, porque quando regressar à cidade irei provavelmente visitar um daqueles médicos que nos tratam a mente, e que à força de nos martelarem os miolos com palavras e nos encherem o sangue com tóxicos, nos fazem tornar aos tempos da razão pura sorrindo beatificamente. Beatificamente, sim, senhor, porque são precisas capacidades de santo para aturar o que por aí vai e que quer dar connosco em doidos. Ainda não deu por nada? Bom, se assim é, vai ter de recorrer ao tal médico para que ele, depois de o ouvir falar do prometido “paraíso socrático”, e que o “filósofo”, persistente como é, ainda não deixou de no-lo prometer, conclua que você perdeu de todo os trambelhos e que muito dificilmente será recuperável para o mundo das mentes sãs. Sim, ainda há mentes sãs. Estavam os meus olhos ainda arregalados depois de algumas notícias que tinham entrado pelos meus ouvidos quando uma outra em tropel incontido me invadiu o pavilhão auricular, depois se comprimiu por aquele buraquinho que leva os sons ao tímpano, ao martelo, a bigorna, e se estatelou no meu cérebro ainda atordoado. Quer saber o que ouvi? Pois vou contar-lho porque não sou daqueles que guardam para si o que a todos cabe desfrutar.
Um senhor doutor, sim, na política todos são doutores e alguns até dizem ser engenheiros, refiro-me concretamente ao senhor Dr. Passos Coelho, que revelou para quem o quis ouvir que a política é uma choldra, estas palavras são minhas embora resultem do raciocínio de Sua Excelência, e que os políticos deviam ser julgados civil e criminalmente pelas malfeitorias económicas que andam a fazer por aí. Depois de ter conseguido digerir mentalmente tão sábias palavras, dei um salto do sofá, uma palmada na testa, e exclamei: caramba, o homem tem andado a ouvir-me. Há anos que ando a pregar que esta paródia tem de acabar um dia, e que bom seria que os políticos fossem julgados pelo que fazem, não apenas politicamente, porque isso já todos percebemos que não é julgamento nenhum. Já o tinha pensado, sim, senhor, mas juntara-lhe um novo sistema político que substituísse a desgastada e corroída Democracia Representativa por uma Democracia Responsável, e no alto desse edifício político-legislativo colocava um Tribunal da República, em vez do Tribunal Constitucional onde estão uns senhores que de vez em quando leem a Constituição e nos presenteiam com as suas doutas conclusões. Descanse porque não o maçarei com a minha doutrina política nem com a reestruturação do Estado, mas procurarei refletir apenas sobre as palavras do senhor doutor e partilhar consigo as minhas preocupações. Não acredita que esteja preocupado? Pois acredite. Na noite a seguir à tal revelação tive de tomar uma pastilha para dormir, e apesar de já estar cansado de tantas pastilhas fornecidas pela televisão, pela rádio e pelos jornais, esta fez efeito, e dormi o sono dos justos, isto é, o dos ignorantes da política. Porém, ao acordar, as palavras de Sua Excelência regressaram nítidas e claras como sempre são, e apoderaram-se novamente do meu encéfalo, da minha corrente sanguínea, de cada célula, atirando de novo comigo para o turbilhão da política e das inquietações. Pois dizia o senhor Dr. Pedro Passos Coelho que os políticos deveriam ser julgados civil e criminalmente pelas poucas-vergonhas que andam por aí a fazer, e foi esta afirmação que, como já o informei, me deixou preocupado. Acompanhe o meu raciocínio e diga-me se não tenho razão para tamanho nervosismo e inquietação.
Todos sabemos que há um princípio geral da lei que afirma não poder ela ter efeitos retroativos, mas a experiência tem-nos mostrado que algumas os têm. E quando? Quando convém a alguns senhores porque retirarão benefícios próprios, já que os da nação, está devidamente comprovado, não interessam para coisa alguma. Ponho então a questão que tanto me preocupou depois de ouvir as palavras do presidente do PSD. Se a lei que julgará os políticos civil e criminalmente tiver efeitos retroativos, não corre o progenitor da ideia o risco de ficar praticamente só no seu partido? Sim, sozinho, desamparado, a falar com as paredes, sem acessores que tão bem o têm aconselhado, sem futuros ministros e secretários de Estado, nem sub-secretários, nem secretárias, nem uma multidão de funcionários, enfim, sozinho como um eremita, semelhante ao tal que quer fugir da política para as regiões campestres.
Se a memória não me atraiçoa, há uns tempos atrás alguns senhores respeitáveis, é claro, do partido de Sua Excelência, andaram a meter as mãozinhas em dinheiro que não era seu, e agora parece correr pelos tribunais uns processos contra eles, e que Deus nos dê vida longa para termos conhecimento do acórdão que os há de condenar. Estão a ver como é ingrato o mundo da política? Um homem tem uma ideia fantástica, até já vieram dizer que não há país no mundo onde alguém a tivesse tido antes, e depois vem o empecilho da lei criada com tanto desvelo pegar em quem anda a cuidar do seu futuro, a metê-los na cadeia, a retirar da “vida ativa” gente possuidora de grandes dotes de inteligência e capacidade de trabalho, deixando cá fora tolos como eu, como você, e que para ser sincero, para pouco servimos. É verdade que quando chegam as eleições vamos enfiar na urna o votozinho, e que depois regressamos deste ato cívico com os olhos em alvo por vivermos num país democrático, por sermos uns democratas, por elegermos a nata dos democratas.
O senhor Dr. Pedro Passos Coelho, assim como o meu querido leitor, sabem muito bem que os meus neurónios e as suas aglomerações a que os neurologistas chamam nodos andam inquietos e pouco operantes, mas apesar disso atrevo-me a aconselhar o senhor presidente do PSD: tenha cuidado com as ideias inovadoras porque o tiro pode sair-lhe pela culatra, e todos conhecemos as maléficas consequências de tais acidentes. Ideias corretas, sãs, escorreitas, são aumento de impostos, redução de salários, conselhos para poupar o que não temos, e fazer tudo isto em nome de uma pátria que precisa dos nossos sacrifícios, dizem que de todos nós, para lhe restaurar as forças e a reerguer às alturas que já teve.
Parece-me estar a ouvir o caro leitor a dizer que essa estória das alturas da pátria não passa de uma grande aldrabice, como a do Vasco da Gama ter DESCOBERTO o caminho marítimo para a Índia. Eu também não tenho a certeza de termos estado nas tais alturas. A única coisa que sei é que naquele tempo com menos de dois milhões de habitantes este país se fez ao mar e foi por aí fora procurar terras ignotas, pelos vistos até para os que lá viviam, mas nós que somos um povo cristão com um coração do tamanho do mundo esclarecemos os seus rudes cérebros quanto à sua existência real. Há também más línguas que dizem que o projeto marítimo que nos tornou nos donos dos mares resultou da fome, sim, da ancestral fomezinha, mais ou menos como a que por aí grassa, e que em desespero de causa nos metemos numa casca de noz, afrontamos ventos e procelas porque morrer por morrer que seja de afogamento que é coisa rápida, e não de fome que leva tanto tempo que não há paciência que resista. Quanto à DESCOBERTA do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, já ouvi dizer que foi uma grande trafulhice porque saiu da pátria bem amada com as cartas do Bartolomeu Dias que o levaram à costa oriental da África, e que, depois, às cegas, para que não se perdesse foi navegando para norte à vista de costa, até que em Sofala o rei local o presenteou com o melhor piloto da rota da índia, um tal Ahmad Ibn-mãdjid que o levou “pela mão” até Calecute. Se quisermos contar esta estória numa versão mais moderna e tecnológica, é o mesmo que você entrar no seu carro para ir onde nunca foi, marcar no GPS tal destino, e depois de lá chegar, sair da carripana aos saltos de contentamento, gritando: descobri! Descobri o caminho para esta terra ignota, eu, uma réplica atualizada dos velhos descobridores.
É claro que não devemos acreditar em tudo o que nos contam, e por isso deixo aqui o meu conselho: primeiro dê atenção ao que lê, ao que ouve ou ao que vê, pare para pensar durante o tempo que precisar, e só depois deixe que se instale a informação no caixote do lixo da sua memória porque provavelmente nunca lhe servirá para nada. O senhor DOUTOR, este sim, com maiúsculas, António Damásio explicou-nos no “Erro de Descartes” que o tal “cogito, ergo sum” era uma patranha, e que para a coisa estar correta e em português, se deveria dizer: “sinto, penso, logo existo”. Tem razão o douto mestre da neurologia, mas receio que a sua teoria não seja aplicável aos portugueses. Também eu tenho uma teoria, não são só os outros doutores, deixe-me confessar-lhe em voz baixa que também eu tenho um Dr.zinho, e que é a seguinte: sentir, pensar e existir é uma verdade insofismável, mas, e há sempre um mas nestas coisas, os portugueses ficam de fora da teoria pelo simples facto que os seus corpos e mentes se encontram entorpecidos pela dormência causada pela política, pela economia, pela sociedade em geral que parece ter enlouquecido, pelo desemprego, pela fome, pela falta de habitação condigna para que os ainda cristãos possam descansar os ossos, com o dinheirinho que andamos a pagar para que uma súcia de malandros ande por aí de costa direita sem trabalhar, e já se vê que nestas condições não podemos sentir nada, e assim lá vai por água abaixo a teoria de António Damásio porque a verdadeira ciência tem de ser aplicável a todos, e sem exceções. Grande inconveniente este o de deslustrarmos tão extraordinária descoberta, mas que fazer? Parece termos vindo ao mundo com esta sina de pôr em causa tudo o que os outros pensam e aceitam, e ficarmos aqui sozinhos neste país feito de beira-mar com os pés metidos na água, e salgada, que já ouvi dizer que faz muito bem à saúde. A propósito de saúde, dou-lhe o conselho com que iniciei esta minha carta. Pegue no carrinho, meta-se à estrada, a que anunciava o progresso futuro, e fuja para as serras. Esconda-se por detrás de um penhasco para que ninguém o possa ver e dar-lhe alguma notícia que não deseja conhecer.
Grato pela sua atenção subscrevo-me de espírito sublinhadamente reconhecido, prometendo voltar às letras se a tal me obrigarem.



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