A “crise” é a desculpa para a desmontagem final dos Estados de bem-estar social e a desregulamentação dos mercados de trabalho, enfraquecendo os sindicatos e conseguindo por consequência a redução dos salários. Por Vicenç Navarro
Artigo | 25 Julho, 2010 - 16:41
Foto de Paulete Matos Neste momento, vive-se um grave problema no mundo inteiro. A taxa de crescimento económico dos EUA e da União Europeia (UE) – que representam metade da economia global – caiu de forma muito significativa. Na realidade os dois países-continentes apresentaram mesmo um crescimento negativo, do qual se estão a recuperar muito lentamente, em primeiro lugar os EUA e depois os países da UE-15. Neste grupo, o crescimento é muito baixo, ainda mais abaixo do registado nos EUA, muito embora este último também não possa repicar os seus sinos em comemoração. Em Maio deste ano, foram criados apenas 20 mil novos postos de trabalho nos EUA, ante os 217 mil do mês anterior.
No entanto, vários países em desenvolvimento estão a crescer em ritmo forte, e o que mais cresce é a China, com números não inferiores a 8,7% por ano (em 2009). A China, portanto, está a liderar o crescimento mundial, com os EUA muito atrás e a UE ainda mais atrás. O que explica este gradiente de crescimento? A resposta é fácil de ver e tem dois componentes. Um deles é o estímulo ao crescimento económico e a forma como vem sendo realizado. A China ultrapassou a cifra de 8% do PIB em investimentos públicos que visam a criação de empregos. Os EUA despendem 5%, com um tipo de estímulo que favoreceu a criação de empregos públicos e privados. Em contraste, na UE o estímulo foi muito inferior (2,3% do PIB), sendo predominantemente constituído por cortes de impostos, que têm pouco impacto na criação de emprego. Nos EUA, vozes influentes, como a do assessor económico do presidente Obama, o senhor Larry Summers, pedem agora um segundo estímulo de 200 mil milhões de dólares (os sindicatos – AFL-CIO – estão a pedir 400 mil milhões). Na UE, no entanto (embora seja difícil de acreditar), os gastos dos governos estão a ser reduzidos, o que equivale ao suicídio económico a longo prazo. Mas as economias não morrem (ou seja, não entram em colapso), a menos que algo as empurre para a queda e para a substituição por outro sistema (o que não é provável que aconteça); então, o que provavelmente acontecerá é que crescerão muito pouco e com um sacrifício generalizado das classes trabalhadoras. Na verdade, isso também pode ocorrer em muitos países que ora se encontram sob a pressão do FMI, a voz grossa neoliberal, que impõe cortes substanciais nos gastos públicos e condena esses países à miséria, como se vê em um relatório recente da UNICEF (ver a segunda parte deste artigo).
A outra parte da resposta é que o grau de recuperação de um país depende do grau de controlo que o Estado tem sobre o capital financeiro. Quanto maior este controle, maior a recuperação. O Estado chinês controla o sector financeiro, enquanto na UE é o oposto: o sector financeiro parece controlar os estados. O que deve ser feito é que o Estado assuma o controle do sector financeiro. Sem que isso aconteça, é difícil prever uma recuperação rápida.
O que estou a dizer é óbvio, mas o facto de sê-lo não garante que tudo isto seja feito, uma vez que requer uma vontade política para enfrentar o capital financeiro, e a isto os políticos da UE não se atrevem. Em vez disso, puxam da sua coragem para enfrentar os mais fracos. O que Joseph Stiglitz descreveu como obsessão doentia com os mercados de trabalho europeus significa que o capital financeiro ainda é muito forte e o mundo do trabalho ainda é muito fraco nos países da UE. No entanto, as reformas em curso não terão qualquer impacto sobre o declínio no emprego – o maior problema da UE. Pelo contrário, afectá-lo-ão negativamente.
O que realmente está a acontecer na UE
Vemos que em Espanha e na União Europeia estão a desenvolver-se as políticas neoliberais que os grupos empresariais e financeiros desejaram que se realizassem por anos a fio, e que agora, aproveitando a crise (criada pelas próprias empresas financeiras), pressionam os Estados-membros para que estes as imponham às classes populares. A “crise” é a desculpa para a desmontagem final dos Estados de bem-estar social e a desregulamentação dos mercados de trabalho, enfraquecendo os sindicatos e conseguindo por consequência a redução dos salários. Para atingir o primeiro objectivo – a redução do Estado de bem-estar social – está-se a usar o argumento da disciplina fiscal, que se deve entender como a eliminação do défice fiscal do Estado e a redução da dívida pública com base na redução da despesa pública (incluindo gastos sociais). Para atingir o último (enfraquecer os sindicatos e rebaixar os salários), salienta-se a necessidade de aumentar a competitividade, a fim de estimular a economia através da exportação de produtos nacionais. Neste esquema, as vozes neoliberais – que costumavam usar os EUA como modelo – agora exaltam a Alemanha, empurrando-a como “exemplo” para que os demais países da UE copiem suas acções. Naquele país, os rendimentos do trabalho têm diminuído agudamente vis-à-vis um crescimento exuberante dos rendimentos de capital, com base na banca e nas empresas exportadoras.
Estas medidas neoliberais são apresentadas como necessárias para resolver a crise. Sem eles, supostamente, os países da UE – incluindo a Espanha – não sairão da crise em que vivem. É importante saber que as mesmas vozes neoliberais, os mesmos argumentos, eram usados antes da crise actual. Se o leitor ler, como o fiz, os documentos do Fundo Monetário Internacional, do Banco Central Europeu, do Banco de Espanha e os relatórios da OCDE e do patronato espanhol, verá que essas políticas neoliberais foram postas em marcha desde a década de oitenta. Os seus documentos são extremamente previsíveis. Leia um e tê-los-á lido todos. Toda essa gente tem a dizer a mesma coisa. O documento final é um relatório do Deutsche Bundesbank, que não economiza nas conclusões. Ele diz que, se essas políticas não forem implementadas, a economia europeia irá afundar. E promove, mais uma vez, as políticas neoliberais, com o apoio do FMI. Parece que, finalmente, conseguiram.
As consequências políticas do FMI e da UE
A União Europeia – dominada por bancos alemães e de outros países no seio da UE-15 –, assistida pelo Fundo Monetário Internacional, já tem estado a implementar essas políticas, nos últimos anos, nos países bálticos, como condição de admissão na Eurozona. Os resultados têm sido desastrosos. Estima-se que o PIB desses países será reduzido em 20% desde que essas reformas foram iniciadas em 2007. Nenhum país (desde que os EUA perderam 25% do seu PIB durante a Grande Depressão) viveu uma situação semelhante.
O FMI simplesmente assume, de forma demasiado optimista e pouco realista, que essas economias se recuperarão. Mas, mesmo nas suas próprias projecções, reconhece que, na Lituânia, em 2014, o PIB será 7,1% inferior ao registado no ano de 2007, 9,1% inferior na Estónia e na Letónia, 14% abaixo. Enquanto isso, em todos estes países o desemprego tem disparado e está entre 15% e 20%. Essas receitas, claro está, terão os mesmos resultados em todos os países que têm sido aplicadas. A América Latina é o continente que mais sofreu como resultado da imposição das políticas do FMI; os casos mais conhecidos são os da Argentina e da Bolívia. Nesses países, a intervenção do FMI provocou um declínio no PIB e um aumento dramático da pobreza. Na verdade, esses casos são exemplos de políticas altamente impopulares, dado que são prejudiciais aos interesses da classe trabalhadora, e são extremamente ineficazes. Daí a enorme impopularidade do FMI (onde se questionou até mesmo a necessidade da sua existência) e a ascensão de governos de esquerda, que praticamente expulsaram o FMI dos seus países. Na Argentina, o governo Kirchner, em 2001, mudou radicalmente a política económica do país, abandonando as políticas neoliberais do FMI e, em vez da catástrofe prevista pelo órgão, seis meses após o início das políticas keynesianas, o país cresceu 9% ao ano durante os seis anos que se seguiram. Em 2008, a economia da Argentina havia crescido enormemente, aumentando o seu tamanho por um terço.
Uma situação semelhante ocorreu na Bolívia, onde Evo Morales mudou radicalmente a política do governo, passando do neoliberalismo a uma política de expansão dos gastos públicos, enquanto nacionalizava o gás e do petróleo. A Bolívia é hoje um dos países que mais cresce na América Latina.
Se as políticas neoliberais são tão nocivas, porque continuam a ser propostas? A explicação mais frequente é a persistência de um dogma – o dogma neoliberal reproduzido no Consenso de Washington e na sua versão europeia, o Consenso de Bruxelas, nos fóruns financeiros e as políticas que influenciam. Mas a pergunta que deve ser feita é por que esta ideologia continua a ser promovida. E a resposta é óbvia. Essas políticas continuam a ser implementadas porque servem os interesses das classes empresariais e financeiras. O fato de considerarem a redução do défice e da dívida como o objectivo mais importante das suas políticas é porque, com isso, reduz-se a protecção social se e eleva a taxa de desemprego na classe trabalhadora, debilitando-a e fortalecendo aquelas, aumentando os seus lucros. Como resultado das políticas neoliberais, os ganhos de capital aumentaram, atingindo níveis sem precedentes, enquanto os rendimentos do trabalho têm diminuído. E isso é o que conta para eles. Tudo o resto é secundário.
Mas, para isso, eles precisam apresentar estas políticas como absolutamente necessárias, ser assistidas nesta tarefa por instituições neoliberais que formatam a sabedoria económica convencional, promovida na maioria dos meios de comunicação e persuasão, enquanto se ocultam fatos embaraçosos que mostram não só a sua incompetência, mas a sua inconsistência. O FMI, que impõe enormes sacrifícios salariais para os países e grandes reduções nos rendimentos sociais (como o adiamento da idade da aposentadoria), paga salários astronómicos aos seus funcionários (apesar de sua óbvia deficiência), permitindo que se reformem aos 51 anos (sim, leu correctamente, 51 anos), pagando pensões superiores a 100.000 dólares. Não é preciso adicionar comentários.
Tradução do blogue Outra Política
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