NÃO ME CALO
1. Vale a pena combater a corrupção? Para
dois juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, não.
Como deverá uma pessoa agir para não
ser perseguida nem pelo corruptor nem pela justiça? Ou foge e fica calada, ou
aceita o suborno ou, se achar que isso é insuportável, denuncia anonimamente,
de preferência através da internet.
Mas há uma coisa que nunca deverá
fazer: assumir que denuncia a corrupção, precaver-se contra os ataques do
corruptor e colaborar com as autoridades. A não ser que seja tolo e queira ser
perseguido e enxovalhado.
2. Em 2006, fui contactado por um
indivíduo que, telefonando sob uma identidade dissimulada, pediu um encontro
particular num bar de um hotel, para tratar de assunto do interesse de ambos.
Desconfiado de uma abordagem criminosa,
fui, mas gravei a conversa, para me poder defender, se o sujeito pretendesse
“virar” a conversa contra mim e tentasse passar de criminoso a vítima. O que
veio a acontecer e é um “clássico” nas máfias da corrupção.
A conversa era para tentar corromper o
meu irmão, vereador em Lisboa. No dia seguinte, depositei a única cópia da gravação
no Ministério Público. E denunciei a corrupção.
O MP pediu-me para ir a novo encontro
e obter nova gravação, agora com autorização judicial. E assim foi. Tive mais
duas conversas que foram prova decisiva na acusação e condenação do corruptor,
a qual, finalmente, foi garantida em Janeiro passado, por um acórdão do Supremo
Tribunal.
3. Esta história devia ter tido um
desfecho rápido e útil – exemplar – para a prevenção da corrupção.
Todavia,
a condenação do corruptor percorreu um sinuoso caminho e eu acabei a enfrentar vários
processos, de natureza criminal, civil e disciplinar, contra um exército de juristas
por ele contratados para proteger o seu objectivo ilícito de ficar dono do maior
e mais bem situado terreno disponível para construção, em Lisboa (na ex-Feira
Popular).
4. Depois de absolvido na 1ª instância e
de o MP ter sustentado a justeza da decisão, fui agora condenado por dois
juízes da Relação num acórdão com assinaturas ilegíveis (mas um deles já veio a
público gabar-se da sua autoria), pelo crime de gravação ilícita: a que eu
próprio fiz, para evitar que o corruptor pudesse convencer alguém, como tentou,
de que eu é que o teria aliciado – e que imediatamente entreguei ao Ministério
Público.
5. O acórdão utiliza dois argumentos. Diz
que, tendo eu optado por ir ao encontro, fui eu que criei o perigo! Por outro
lado, numa extraordinária ponderação de valores, não vislumbra qualquer
supremacia do meu direito à honra e à defesa da verdade sobre o direito à
palavra do corruptor.
Duvidam que um tribunal superior do
vosso país sustente tais propósitos insultuosos para qualquer consciência
cívica? Leiam o acórdão e julguem por vós.
6. Mas o mais grave é que o tribunal,
para legitimar a condenação, sem pedido de ninguém e sem consultar nenhuma das
provas do julgamento, decidiu alterar a matéria de facto dada como assente, invertendo
o seu sentido.
Onde se lia que não fora provado que eu
actuara sabendo da natureza criminosa da minha conduta – como de facto não
sabia, com uma convicção partilhada por juízes, procuradores, advogados e
jurisconsultos de todo o mundo (também em Portugal) –, passou a constar que eu
bem sabia que estava a cometer um crime, numa decisão eivada da mais repulsiva
arbitrariedade.
Nem pediram à 1ª instância a
fundamentação que alegaram que faltava, nem determinaram novo julgamento, nem
sequer aplicaram uma pena (remetendo tal escolha para a 1ª instância, numa
singular originalidade). Parece que aquilo que importava era assegurar que o denunciante
da corrupção não se ia “safar”.
7. Este acórdão alcança objectivamente dois
fins fundamentais: a) intimidar quem quiser denunciar a corrupção; b) humilhar
o denunciante concreto deste caso, voz demasiado incómoda.
8. Mas eu não me rendo. Poderão os
juízes ameaçar-me com novos processos, como um deles já fez. Poderão prender-me.
Mas não me calarão.
A justiça é o mais precioso dos
valores da vida em comunidade. Não pode estar nas mãos de gente desta. Por isso,
continuarei este combate. Pela minha dignidade e por quem confia em mim. Pela justiça
portuguesa, incluindo pela grande maioria dos juízes portugueses. Pela decência
na sociedade portuguesa.
Ricardo Sá Fernandes
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