domingo, 26 de agosto de 2012

CARTA ABERTA

Aconselho vivamente a leitura desta carta, que está a fazer furor na internet...

Devem ler tudo, mas não percam, particularmente, os parágrafos destacados no final:


Exmo Senhor Primeiro Ministro

Começo por me apresentar, uma vez que estou certa que nunca ouviu falar de mim.

Chamo-me Myriam. Myriam Zaluar é o meu nome “de guerra”. Basilio é o apelido pelo

qual me conhecem os meus amigos mais antigos e também os que, não sendo

amigos, se lembram de mim em anos mais recuados.

Nasci em França, porque o meu pai teve de deixar o seu país aos 20 e poucos anos.

Fê-lo porque se recusou a combater numa guerra contra a qual se erguia. Fê-lo

porque se recusou a continuar num país onde não havia liberdade de dizer, de fazer,

de pensar, de crescer. Estou feliz por o meu pai ter emigrado, porque se não o

tivesse feito, eu não estaria aqui. Nasci em França, porque a minha mãe teve de

deixar o seu país aos 19 anos. Fê-lo porque não tinha hipóteses de estudar e

desenvolver o seu potencial no país onde nasceu. Foi para França estudar e trabalhar

e estou feliz por tê-lo feito, pois se assim não fosse eu não estaria aqui. Estou feliz

por os meus pais terem emigrado, caso contrário nunca se teriam conhecido e eu não

estaria aqui. Não tenho porém a ingenuidade de pensar que foi fácil para eles sair do

país onde nasceram. Durante anos o meu pai não pôde entrar no seu país, pois se o

fizesse seria preso. A minha mãe não pôde despedir-se de pessoas que amava

porque viveu sempre longe delas. Mais tarde, o 25 de Abril abriu as portas ao

regresso do meu pai e viemos todos para o país que era o dele e que passou a ser o

nosso. Viemos para viver, sonhar e crescer.

Cresci. Na escola, distingui-me dos demais. Fui rebelde e nem sempre uma menina

exemplar mas entrei na faculdade com 17 anos e com a melhor média daquele ano:

17,6. Naquela altura, só havia três cursos em Portugal onde era mais dificil entrar do

que no meu. Não quero com isto dizer que era uma super-estudante, longe disso.

Baldei-me a algumas aulas, deixei cadeiras para trás, saí, curti, namorei, vivi

intensamente, mas mesmo assim licenciei-me com 23 anos. Durante a licenciatura

dei explicações, fiz traduções, escrevi textos para rádio, coleccionei estágios,

desperdicei algumas oportunidades, aproveitei outras, aprendi muito, esqueci-me de

muito do que tinha aprendido.

Cresci. Conquistei o meu primeiro emprego sozinha. Trabalhei. Ganhei a vida.

Despedi-me. Conquistei outro emprego, mais uma vez sem ajudas. Trabalhei mais.

Saí de casa dos meus pais. Paguei o meu primeiro carro, a minha primeira viagem, a

minha primeira renda. Fiquei efectiva. Tornei-me personna non grata no meu local de

trabalho. “És provavelmente aquela que melhor escreve e que mais produz aqui

dentro.” – disseram-me – “Mas tenho de te mandar embora porque te ris demasiado

alto na redacção”. Fiquei.

Aos 27 anos conheci a prateleira. Tive o meu primeiro filho. Aos 28 anos conheci o

desemprego. “Não há-de ser nada, pensei. Sou jovem, tenho um bom curriculo,

arranjarei trabalho num instante”. Não arranjei. Aos 29 anos conheci a precariedade.

Desde então nunca deixei de trabalhar mas nunca mais conheci outra coisa que não

fosse a precariedade. Aos 37 anos, idade com que o senhor se licenciou, tinha eu

dois filhos, 15 anos de licenciatura, 15 de carteira profissional de jornalista e carreira

‘congelada’. Tinha também 18 anos de experiência profissional como jornalista,

tradutora e professora, vários cursos, um CAP caducado, domínio total de três

línguas, duas das quais como “nativa”. Tinha como ordenado ‘fixo’ 485 euros x 7

meses por ano. Tinha iniciado um mestrado que tive depois de suspender pois foi

preciso escolher entre trabalhar para pagar as contas ou para completar o curso. O

meu dia, senhor primeiro ministro, só tinha 24 horas…

Cresci mais. Aos 38 anos conheci o mobbying. Conheci as insónias noites a fio.

Conheci o medo do amanhã. Conheci, pela vigésima vez, a passagem de bestial a

besta. Conheci o desespero. Conheci – felizmente! – também outras pessoas que

partilhavam comigo a revolta. Percebi que não estava só. Percebi que a culpa não era

minha. Cresci. Conheci-me melhor. Percebi que tinha valor.

Senhor primeiro-ministro, vou poupá-lo a mais pormenores sobre a minha vida. Tenho

a dizer-lhe o seguinte: faço hoje 42 anos. Sou doutoranda e investigadora da

Universidade do Minho. Os meus pais, que deviam estar a reformar-se, depois de

uma vida dedicada à investigação, ao ensino, ao crescimento deste país e das suas

filhas e netos, os meus pais, que deviam estar a comprar uma casinha na praia para

conhecerem algum descanso e descontracção, continuam a trabalhar e estão a

assegurar aos meus filhos aquilo que eu não posso. Material escolar. Roupa.

Sapatos. Dinheiro de bolso. Lazeres. Actividades extra-escolares. Quanto a mim,

tenho actualmente como ordenado fixo 405 euros X 7 meses por ano. Sim, leu bem,

senhor primeiro-ministro. A universidade na qual lecciono há 16 anos conseguiu mais

uma vez reduzir-me o ordenado. Todo o trabalho que arranjo é extra e a recibos

verdes. Não sou independente, senhor primeiro ministro. Sempre que tenho extras

tenho de contar com apoios familiares para que os meus filhos não fiquem sozinhos

em casa. Tenho uma dívida de mais de cinco anos à Segurança Social que, por sua

vez, deveria ter fornecido um dossier ao Tribunal de Família e Menores há mais de

três a fim que os meus filhos possam receber a pensão de alimentos a que têm direito

pois sou mãe solteira. Até hoje, não o fez.

Tenho a dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: nunca fui administradora de

coisa nenhuma e o salário mais elevado que auferi até hoje não chegava aos mil

euros. Isto foi ainda no tempo dos escudos, na altura em que eu enchia o depósito do

meu renault clio com cinco contos e ia jantar fora e acampar todos os fins-de-semana.

Talvez isso fosse viver acima das minhas possibilidades. Talvez as duas viagens que

fiz a Cabo-Verde e ao Brasil e que paguei com o dinheiro que ganhei com o meu

trabalho tivessem sido luxos. Talvez o carro de 12 anos que conduzo e que me

custou 2 mil euros a pronto pagamento seja um excesso, mas sabe, senhor primeiroministro,

por mais que faça e refaça as contas, e por mais que a gasolina teime em

aumentar, continua a sair-me mais em conta andar neste carro do que de transportes

públicos. Talvez a casa que comprei e que devo ao banco tenha sido uma

inconsciência mas na altura saía mais barato do que arrendar uma, sabe, senhor

primeiro-ministro. Mesmo assim nunca me passou pela cabeça emigrar…

Mas hoje, senhor primeiro-ministro, hoje passa. Hoje faço 42 anos e tenho a dizer-lhe

o seguinte, senhor primeiro-ministro: Tenho mais habilitações literárias que o senhor.

Tenho mais experiência profissional que o senhor. Escrevo e falo português melhor

do que o senhor. Falo inglês melhor que o senhor. Francês então nem se fale. Não

falo alemão mas duvido que o senhor fale e também não vejo, sinceramente, a

utilidade de saber tal língua. Em compensação falo castelhano melhor do que o

senhor. Mas como o senhor é o primeiro-ministro e dá tão bons conselhos aos seus

governados, quero pedir-lhe um conselho, apesar de não ter votado em si. Agora que

penso emigrar, que me aconselha a fazer em relação aos meus dois filhos, que

nasceram em Portugal e têm cá todas as suas referências? Devo arrancá-los do seu

país, separá-los da família, dos amigos, de tudo aquilo que conhecem e amam? E, já

agora, que lhes devo dizer? Que devo responder ao meu filho de 14 anos quando me

pergunta que caminho seguir nos estudos? Que vale a pena seguir os seus

interesses e aptidões, como os meus pais me disseram a mim? Ou que mais vale

enveredar já por outra via (já agora diga-me qual, senhor primeiro-ministro) para que

não se torne também ele um excedentário no seu próprio país? Ou, ainda, que venha

comigo para Angola ou para o Brasil por que ali será com certeza muito mais

valorizado e feliz do que no seu país, um país que deveria dar-lhe as melhores

condições para crescer pois ele é um dos seus melhores – e cada vez mais raros –

valores: um ser humano em formação.

Bom, esta carta que, estou praticamente certa, o senhor não irá ler já vai longa.

Quero apenas dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: aos 42 anos já dei muito

mais a este país do que o senhor. Já trabalhei mais, esforcei-me mais, lutei mais e

não tenho qualquer dúvida de que sofri muito mais. Ganhei, claro, infinitamente

menos. Para ser mais exacta o meu IRS do ano passado foi de 4 mil euros. Sim, leu

bem, senhor primeiro-ministro. No ano passado ganhei 4 mil euros. Deve ser das

minhas baixas qualificações. Da minha preguiça. Da minha incapacidade. Do meu

excedentarismo. Portanto, é o seguinte, senhor primeiro-ministro: emigre você,

senhor primeiro-ministro. E leve consigo os seus ministros. O da mota. O da fala

lenta. O que veio do estrangeiro. E o resto da maralha. Leve-os, senhor primeiroministro,

para longe. Olhe, leve-os para o Deserto do Sahara. Pode ser que os outros

dois aprendam alguma coisa sobre acordos de pesca.

Com o mais elevado desprezo e desconsideração, desejo-lhe, ainda assim, feliz natal

OU feliz ano novo à sua escolha, senhor primeiro-ministro

… e como eu sou aqui sem dúvida o elo mais fraco, adeus




Myriam Zaluar, 19/12/2011

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