Aconselho vivamente a leitura desta carta, que está a fazer furor na internet...
Devem ler tudo, mas não percam, particularmente, os parágrafos destacados no final:
Exmo Senhor Primeiro Ministro
Começo por me apresentar, uma vez que estou certa que nunca ouviu falar de mim.
Chamo-me Myriam. Myriam Zaluar é o meu nome “de guerra”. Basilio é o apelido pelo
qual me conhecem os meus amigos mais antigos e também os que, não sendo
amigos, se lembram de mim em anos mais recuados.
Nasci em França, porque o meu pai teve de deixar o seu país aos 20 e poucos anos.
Fê-lo porque se recusou a combater numa guerra contra a qual se erguia. Fê-lo
porque se recusou a continuar num país onde não havia liberdade de dizer, de fazer,
de pensar, de crescer. Estou feliz por o meu pai ter emigrado, porque se não o
tivesse feito, eu não estaria aqui. Nasci em França, porque a minha mãe teve de
deixar o seu país aos 19 anos. Fê-lo porque não tinha hipóteses de estudar e
desenvolver o seu potencial no país onde nasceu. Foi para França estudar e trabalhar
e estou feliz por tê-lo feito, pois se assim não fosse eu não estaria aqui. Estou feliz
por os meus pais terem emigrado, caso contrário nunca se teriam conhecido e eu não
estaria aqui. Não tenho porém a ingenuidade de pensar que foi fácil para eles sair do
país onde nasceram. Durante anos o meu pai não pôde entrar no seu país, pois se o
fizesse seria preso. A minha mãe não pôde despedir-se de pessoas que amava
porque viveu sempre longe delas. Mais tarde, o 25 de Abril abriu as portas ao
regresso do meu pai e viemos todos para o país que era o dele e que passou a ser o
nosso. Viemos para viver, sonhar e crescer.
Cresci. Na escola, distingui-me dos demais. Fui rebelde e nem sempre uma menina
exemplar mas entrei na faculdade com 17 anos e com a melhor média daquele ano:
17,6. Naquela altura, só havia três cursos em Portugal onde era mais dificil entrar do
que no meu. Não quero com isto dizer que era uma super-estudante, longe disso.
Baldei-me a algumas aulas, deixei cadeiras para trás, saí, curti, namorei, vivi
intensamente, mas mesmo assim licenciei-me com 23 anos. Durante a licenciatura
dei explicações, fiz traduções, escrevi textos para rádio, coleccionei estágios,
desperdicei algumas oportunidades, aproveitei outras, aprendi muito, esqueci-me de
muito do que tinha aprendido.
Cresci. Conquistei o meu primeiro emprego sozinha. Trabalhei. Ganhei a vida.
Despedi-me. Conquistei outro emprego, mais uma vez sem ajudas. Trabalhei mais.
Saí de casa dos meus pais. Paguei o meu primeiro carro, a minha primeira viagem, a
minha primeira renda. Fiquei efectiva. Tornei-me personna non grata no meu local de
trabalho. “És provavelmente aquela que melhor escreve e que mais produz aqui
dentro.” – disseram-me – “Mas tenho de te mandar embora porque te ris demasiado
alto na redacção”. Fiquei.
Aos 27 anos conheci a prateleira. Tive o meu primeiro filho. Aos 28 anos conheci o
desemprego. “Não há-de ser nada, pensei. Sou jovem, tenho um bom curriculo,
arranjarei trabalho num instante”. Não arranjei. Aos 29 anos conheci a precariedade.
Desde então nunca deixei de trabalhar mas nunca mais conheci outra coisa que não
fosse a precariedade. Aos 37 anos, idade com que o senhor se licenciou, tinha eu
dois filhos, 15 anos de licenciatura, 15 de carteira profissional de jornalista e carreira
‘congelada’. Tinha também 18 anos de experiência profissional como jornalista,
tradutora e professora, vários cursos, um CAP caducado, domínio total de três
línguas, duas das quais como “nativa”. Tinha como ordenado ‘fixo’ 485 euros x 7
meses por ano. Tinha iniciado um mestrado que tive depois de suspender pois foi
preciso escolher entre trabalhar para pagar as contas ou para completar o curso. O
meu dia, senhor primeiro ministro, só tinha 24 horas…
Cresci mais. Aos 38 anos conheci o mobbying. Conheci as insónias noites a fio.
Conheci o medo do amanhã. Conheci, pela vigésima vez, a passagem de bestial a
besta. Conheci o desespero. Conheci – felizmente! – também outras pessoas que
partilhavam comigo a revolta. Percebi que não estava só. Percebi que a culpa não era
minha. Cresci. Conheci-me melhor. Percebi que tinha valor.
Senhor primeiro-ministro, vou poupá-lo a mais pormenores sobre a minha vida. Tenho
a dizer-lhe o seguinte: faço hoje 42 anos. Sou doutoranda e investigadora da
Universidade do Minho. Os meus pais, que deviam estar a reformar-se, depois de
uma vida dedicada à investigação, ao ensino, ao crescimento deste país e das suas
filhas e netos, os meus pais, que deviam estar a comprar uma casinha na praia para
conhecerem algum descanso e descontracção, continuam a trabalhar e estão a
assegurar aos meus filhos aquilo que eu não posso. Material escolar. Roupa.
Sapatos. Dinheiro de bolso. Lazeres. Actividades extra-escolares. Quanto a mim,
tenho actualmente como ordenado fixo 405 euros X 7 meses por ano. Sim, leu bem,
senhor primeiro-ministro. A universidade na qual lecciono há 16 anos conseguiu mais
uma vez reduzir-me o ordenado. Todo o trabalho que arranjo é extra e a recibos
verdes. Não sou independente, senhor primeiro ministro. Sempre que tenho extras
tenho de contar com apoios familiares para que os meus filhos não fiquem sozinhos
em casa. Tenho uma dívida de mais de cinco anos à Segurança Social que, por sua
vez, deveria ter fornecido um dossier ao Tribunal de Família e Menores há mais de
três a fim que os meus filhos possam receber a pensão de alimentos a que têm direito
pois sou mãe solteira. Até hoje, não o fez.
Tenho a dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: nunca fui administradora de
coisa nenhuma e o salário mais elevado que auferi até hoje não chegava aos mil
euros. Isto foi ainda no tempo dos escudos, na altura em que eu enchia o depósito do
meu renault clio com cinco contos e ia jantar fora e acampar todos os fins-de-semana.
Talvez isso fosse viver acima das minhas possibilidades. Talvez as duas viagens que
fiz a Cabo-Verde e ao Brasil e que paguei com o dinheiro que ganhei com o meu
trabalho tivessem sido luxos. Talvez o carro de 12 anos que conduzo e que me
custou 2 mil euros a pronto pagamento seja um excesso, mas sabe, senhor primeiroministro,
por mais que faça e refaça as contas, e por mais que a gasolina teime em
aumentar, continua a sair-me mais em conta andar neste carro do que de transportes
públicos. Talvez a casa que comprei e que devo ao banco tenha sido uma
inconsciência mas na altura saía mais barato do que arrendar uma, sabe, senhor
primeiro-ministro. Mesmo assim nunca me passou pela cabeça emigrar…
Mas hoje, senhor primeiro-ministro, hoje passa. Hoje faço 42 anos e tenho a dizer-lhe
o seguinte, senhor primeiro-ministro: Tenho mais habilitações literárias que o senhor.
Tenho mais experiência profissional que o senhor. Escrevo e falo português melhor
do que o senhor. Falo inglês melhor que o senhor. Francês então nem se fale. Não
falo alemão mas duvido que o senhor fale e também não vejo, sinceramente, a
utilidade de saber tal língua. Em compensação falo castelhano melhor do que o
senhor. Mas como o senhor é o primeiro-ministro e dá tão bons conselhos aos seus
governados, quero pedir-lhe um conselho, apesar de não ter votado em si. Agora que
penso emigrar, que me aconselha a fazer em relação aos meus dois filhos, que
nasceram em Portugal e têm cá todas as suas referências? Devo arrancá-los do seu
país, separá-los da família, dos amigos, de tudo aquilo que conhecem e amam? E, já
agora, que lhes devo dizer? Que devo responder ao meu filho de 14 anos quando me
pergunta que caminho seguir nos estudos? Que vale a pena seguir os seus
interesses e aptidões, como os meus pais me disseram a mim? Ou que mais vale
enveredar já por outra via (já agora diga-me qual, senhor primeiro-ministro) para que
não se torne também ele um excedentário no seu próprio país? Ou, ainda, que venha
comigo para Angola ou para o Brasil por que ali será com certeza muito mais
valorizado e feliz do que no seu país, um país que deveria dar-lhe as melhores
condições para crescer pois ele é um dos seus melhores – e cada vez mais raros –
valores: um ser humano em formação.
Bom, esta carta que, estou praticamente certa, o senhor não irá ler já vai longa.
Quero apenas dizer-lhe o seguinte, senhor primeiro-ministro: aos 42 anos já dei muito
mais a este país do que o senhor. Já trabalhei mais, esforcei-me mais, lutei mais e
não tenho qualquer dúvida de que sofri muito mais. Ganhei, claro, infinitamente
menos. Para ser mais exacta o meu IRS do ano passado foi de 4 mil euros. Sim, leu
bem, senhor primeiro-ministro. No ano passado ganhei 4 mil euros. Deve ser das
minhas baixas qualificações. Da minha preguiça. Da minha incapacidade. Do meu
excedentarismo. Portanto, é o seguinte, senhor primeiro-ministro: emigre você,
senhor primeiro-ministro. E leve consigo os seus ministros. O da mota. O da fala
lenta. O que veio do estrangeiro. E o resto da maralha. Leve-os, senhor primeiroministro,
para longe. Olhe, leve-os para o Deserto do Sahara. Pode ser que os outros
dois aprendam alguma coisa sobre acordos de pesca.
Com o mais elevado desprezo e desconsideração, desejo-lhe, ainda assim, feliz natal
OU feliz ano novo à sua escolha, senhor primeiro-ministro
… e como eu sou aqui sem dúvida o elo mais fraco, adeus
Myriam Zaluar, 19/12/2011
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