Agora sol na rua a fim de
me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco
de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto
tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e
nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E
de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente,
mal agradecidos, protestamos.
Deixam de ser ministros e
a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o
senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há
um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes
generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho
não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares,
os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes é hereditário,
dúzias deles.
Tenham o sentido da
realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles
sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a
ingratidão.
O senhor Vale e Azevedo,
outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem
o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em não entender. Claro
que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se
atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá,
sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração
por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão
imensa do Seu seio. Já o estou a ver:
- Senta-te aqui ao meu
lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu
lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu
lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela
nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores
que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro,
espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha
nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E
melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos banquetes
de bem-aventuranças da Eternidade.
As empresas fecham, os desempregados aumentam,
os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a
maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas
ridículas,
ordenados mínimos
irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o
buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de
uma Eternidade feliz. A transcendência deste ato dá-me vontade de ajoelhar à
sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente
indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para
os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão já! Jorge Coelho para o Mosteiro de
Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é
tão feia. Para a Batalha.
Fora com o Soldado
Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros
de História nos enganaram. Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando
Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas
equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o
senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que
estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e
Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com
fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr
o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade
e inveja, a sair.
Quero o senhor Mexia no
Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro
mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem
com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os
protestos, por favor deixem de pecar.
Como pedia o doutor João
das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em
consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam
a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar. Vocês
falam em crise mas as atrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito:
onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas
abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões
plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer
lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em
tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a
queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os
lamentos injustos.
Não se vendem livros?
Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender o nível da nossa
cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa.
Que queremos? Temos
peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta
disto.
Sinceramente, sejamos
justos, a que mais se pode aspirar?
O resto são coisas
insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao
médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a
desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal
a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com
peitos de
litro e beijando-nos uns
aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.
(crónica satírica de
António Lobo Antunes, in Visão Abril 2012)
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