terça-feira, 15 de janeiro de 2008
Escola Pública
Por que muda a gestão das escolas? Porque sim!
Santana Castilho - Professor do ensino superior
Público - 08.01.2008
O único critério, o critério oculto, é domar o que resta, depois de vexar os professores com um estatuto indigno.
O que Sócrates disse no último debate parlamentar de 2007 não me surpreendeu. Fazia sentido esse fechar de ciclo de genuflexão dos professores. Para analisar o diploma agora posto à discussão pública, vou socorrer-me de dois excertos do discurso com que Sócrates fez o anúncio ao país. "Chegou agora o momento de avançar com a alteração da lei de autonomia, gestão e administração escolar." Mas Sócrates não explicou porquê. Para suprir a lacuna fui ler o novo diploma, compará-lo com o anterior, e tirei estas conclusões:
1. Os dois diplomas apregoam autonomia mas castram toda e qualquer livre iniciativa das escolas. Nada muda. Apenas se refina o cinismo, na medida em que muito do anteriormente facultativo (o pouco que não estava regulamentado) passa agora a obrigatório. Não há uma só coisa que seja importante na vida da escola que o órgão de gestão possa, autonomamente, decidir. Um e outro são uma ode ao centralismo asfixiante.
2. O novo diploma diminui o peso dos professores da escola nos órgãos de gestão dessa escola. Esclareço a aparente redundância trazida pela insistência no vocábulo "escola" na construção deste parágrafo. É que o novo diploma torna possível que um professor de qualquer escola, mesmo que seja privada, concorra a director de qualquer outra, pública, mediante "um projecto de intervenção na escola". Que estranho conceito de escola daqui emana! Como pode alguém que não viveu numa escola, que não se envolveu com os colegas e com os alunos dessa escola, que não sofreu os seus problemas nem respirou o seu clima, conceber "um projecto de intervenção na escola"? Não é de intervenção que eles falam. É de subjugação! É a filosofia ASAE transposta para as escolas. Não faltarão os comissários, os "boys" e os "laranjas" deste "centralão" imenso em que a oligarquia partidária transformou o país, a apresentar projectos de intervenção "eficazes", puros, esterilizadores de maus hábitos e más memórias. E este é o único critério, o critério oculto que Sócrates não explicitou: domar o que resta, depois de vexar os professores com um estatuto indigno, de os funcionalizar com uma avaliação de desempenho própria de amanuenses, de os empobrecer com cotas e congelamentos, de os dividir em castas de vergonha. Tinha razão o homem: "Chegou agora o momento de avançar com a alteração da lei de autonomia, gestão e administração escolar." "A nossa visão para a gestão das escolas assenta em três objectivos principais. O primeiro é abrir a escola, reforçando a participação das famílias e comunidades na sua direcção estratégica. O segundo objectivo é favorecer a constituição de lideranças fortes nas escolas. O terceiro é reforçar a autonomia das escolas", disse Sócrates na Assembleia da República.
Mas que está por baixo do celofane? A "abertura" é uma falácia. O Conselho Geral, com a participação da comunidade, já existe, com outro nome. Chama-se Assembleia. Porém, os casos em que esta participação teve relevância são raros. E quem está nas escolas sabe que não minto. Ora não é por mudar o nome que mudam os resultados. A participação da comunidade não se decreta. Promove-se. Se as pessoas acreditarem que podem mudar algo, começam a interessar-se. Mas o despotismo insaciável que este Governo trouxe às escolas não favorece qualquer tipo de participação. Para que as pessoas possam participar, há décadas que Maslow deu o tom: têm que ter necessidades básicas resolvidas. Aqui, as necessidades básicas são não terem fome, terem tempo e terem uma cultura mínima.
Ora, senhor primeiro-ministro, o senhor que empobreceu os portugueses (tem dois milhões de pobres e outros dois milhões de assistidos), que tem meio milhão no desemprego, está à espera que acorram à sua "abertura"? Sabe quem vai acorrer? Os ricos que o senhor tem inchado? Não! Esses estão-se borrifando para a Escola Pública. São os oportunistas e os caciques, para quem a sua "abertura" é de facto uma nova oportunidade.
O senhor, que tem promovido uma política de escola-asilo, porque as pessoas não têm tempo para estar com os filhos, acredita que as famílias portuguesas, as mais miseráveis da Europa, têm disponibilidade para a sua abertura? Não! Conte com os pais interessados de uma classe média que o senhor tem vindo a destruir e são, por isso, cada vez em menor número, e com os autarcas empenhados a quem o senhor dá cada vez menos dinheiro. De novo, repito, terá os arrivistas. Julga que é com os diplomas de aviário das novas oportunidades que dá competência à comunidade para participar na gestão das escolas? Não! Os que conseguiram isso começaram há um século a investir no conhecimento da comunidade e escolheram outros métodos. Porque, ao contrário do senhor, sabem que gerir uma escola é diferente de gerir um negócio ou uma rede de influências partidárias.
A sua visão de escola ficou para mim caracterizada quando o ouvi dizer que tinha escolhido a veneranda Universidade Independente por uma razão geográfica e me foi dada a ler a sua prova de Inglês Técnico, prestada por fax. O que politicamente invocou a propósito deste diploma, que agora nos impõe, está muito longe de limpar essa péssima imagem que me deixou. A mim e a muitos portugueses, pese embora serem poucos os que têm a oportunidade ou a independência para o dizer em público. Disse impõe, e disse bem. Porque a discussão pública é outra farsa. O senhor quer que alguém acredite nisto? Depois de ver o conceito que o seu governo tem do que é negociar e os processos que a sua ministra da Educação tem usado para lidar com os professores? Em plenas férias escolares (mais uma vez) lança a discussão de um diploma deste cariz e dá para tal um mês? Acha isso sério? Se o senhor estivesse de facto interessado em discutir, era o primeiro a promover e a dinamizar esse debate, através do Ministério da Educação. Mas o que o senhor tem feito tem sido cercear todas as hipóteses de participação dos professores em qualquer coisa que valha a pena: retirando-lhe todas as vias anteriormente instituídas e afogando-os em papéis ridículos e inúteis.
Dizem, ou disse o senhor, vá lá a gente saber, que cursou um MBA. Não lhe ensinaram lá que as mudanças organizacionais sérias estabelecem com clareza as razões para mudar? Cuidam de expor aos implicados essas razões e dar-lhes a oportunidade para as questionar? Devem assentar numa avaliação criteriosa do que existia e se quer substituir? Quando podem originar convulsões antecipáveis, devem ser precedidas de ensaios e simulações prudentes? Já reparou que terá que constituir mais de 10 mil assembleias a 20 elementos cada? Que tal como a lei está, são escassos os que podem ser adjuntos do director? Que fecha a porta a que novos professores participem nas tarefas de gestão? Que exclui, paradoxalmente, um considerável número de professores titulares? Que, goste dela ou não, existe uma Lei de Bases que torna o que propõe inconstitucional e como tal já foi chumbado pelo Tribunal Constitucional?
Lideranças fortes? Deixe-me rir enquanto não proíbe o riso. O senhor que só quer uma liderança forte, a sua, que até o seu partido secou e silenciou, quer lideranças fortes na escolas? É falso o que digo? Prove-o! Surpreenda uma vez e permita que professores independentes discutam publicamente o deserto em que está a transformar a Escola Pública e para que este diploma é o elo que faltava.
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