terça-feira, 16 de junho de 2009

ALGO DIFERENTE

HOJE PUBLICO UM CONTO QUE FOI ESCRITO POR UM ESCRITOR OLHANENSE HÁ MUITOS ANOS E TRADUZIDO AGORA POR UM AMIGO MEU DO SEU ORIGINAL EM ESPANHOL.
ESTE ESCRITOR EMIGROU PARA A ARGENTINA FUGINDODA VIDA DIFÍCIL EM PORTUGAL E DAÍ O CONTO SER PUBLICADO NAQUELA LINGUA.
É uma homenagem às dificuldades pelas quaispassaram muitos olhanenses e que nessa época meados do século XX emigraram paraMarrocos, onde então a vida era umpouco melhorqiue noAlgarve.






REGRESSO E PARTIDA
Género: Conto (incluído no livro do autor LA PISCINA)
Autor: António Simões Júnior
Tradução livre do castelhano: J. Carlos Silvestre

Como se fosse um contrabandista, fiz um largo rodeio até deixar o povoado atrás
de mim. Ao longe ressoava ainda o ruído monótono da ondulação, rebentando na praia e dos apitos plangentes dos barcos que tentavam escapar ao vendaval. Aqui e ali ladravam cães, mugiam bois e baliam ovelhas A tiritar de frio, detive-me um instante junto de uma amendoeira florida, cortei uma vara à qual atei a trouxa dos meus haveres pessoais e, levantando a gola do casaco, enfiei-me directamente por um terreno que estava à minha frente.

O vento dificultava-me a marcha, fustigando-me o rosto e obrigando a desviar-me dos cardos e das pedras. Uma gaivota, espavorida, passou sobre a minha cabeça e, na falda de um monte, perfurada por uma alfarrobeira centenária, começou a delinear-se a casa de pedra e barro. À medida que avançava, ia comprovando que nada mudara durante os oito meses da minha ausência. Como acontecia nas épocas invernosas, as paredes que entretanto perderam a cal que as cobria, ostentavam agora musgo e salitre. A alfarrobeira gemia sacudida pelas violentas refegas de vento. Nos seus ramos não havia pássaros e nos seus troncos não cantava a cigarra. Tudo era desolação.

A porta desconjuntada permanecia invariavelmente entreaberta, porém do interior da casa não chegavam aos meus ouvidos sinais de vida. Um silêncio estranho e aterrador impunha a sua rigorosa presença.

Entrei como uma sombra. A minha mãe estava sentada na cozinha com o Ramboia
deitado a seus pés. Calçava umas chinelas de ourelo e estava envolta num velho xaile, mas mesmo assim tiritava de frio. Na chaminé não havia lume. O ambiente não podia ser mais desolador. As aranhas que habitualmente pendiam das teias
tecidas no tecto, deviam ter morrido ou procurado outro sítio. Tanto a minha mãe como o Ramboia levantaram a cabeça, surpreendidos. Nos olhos da minha mãe brilhou um sorriso que, querendo exprimir alegria, redundou em decepção.
O cão teve um estremecimento, como se tivesse dúvidas que me conhecia, agitou a cauda, toda sensibilidade, arreganhou os dentes e rosnou num tom ora ascendente ora descendente.

- Mãe! – disse eu, deixando atrás da porta a vara com minha trouxa.
Ela, na sua habitual atitude fatalista, murmurou:

- Ah, filho! Já voltaste de Marrocos? Isto por cá está agora tão mal e faz tanto frio…Não tenho em casa mais que um bocado de pão e alfarrobas. Onde irás agora conseguir trabalho?

Senti-me sacudido, destroçado, como uma árvore à qual um raio acabasse de fulminá-la O vulto de carne avantajada e coberto de farrapos, que era a minha mãe, mirava-me do banco onde estava sentada com se fosse a Nossa Senhora da

REGRESSO E PARTIDA, de António Simões Júnior… Página 2
Fatalidade, uma virgem sem eira nem beira numa qualquer igreja da povoação vizinha, esperando que eu falasse. Que poderia eu dizer-lhe? Comecei a sentir-me arrependido de ter voltado de Marrocos, sem cheta, com as mãos vazias. Sem saber que responder, apenas me ocorreram estas palavras que me saíram numa voz sumida:
- O Ramboia está agora com melhor aspecto. Já não lhe cai o pêlo, como acontecia
antes de me ter ido embora.

Com efeito, o cão apresentava na cabeça e no lombo madeixas de pêlo renovadas.

- Sim, está um pouco melhorzinho. Como tu não estavas cá, dava-lhe sardinhas amarelas e pão de centeio. Agora não sei o que vai ser dele. Pobre Ramboia, terá
que remediar-se como puder, comendo figos e frutos silvestres por estes campos de Deus, correndo o risco de ser envenenado, ou então terá de caçar gatos. E tu, queres comer alguma coisa? Acabou-se-me o toucinho, mas tenho pão duro, alfarrobas cruas e meia dúzia de azeitonas. Em Marrocos devias comer melhor. Porque voltaste?

Senti um nó subir-me à garganta. As paredes do estômago rangeram como a mó
de pedra que a minha mãe usava para moer o grão do milho. Estava com fome, sem comer há mais de vinte e quatro horas, porém, sentindo pela primeira vez despertar em mim um sentimento de dignidade, de amor - próprio, de não sei quê, exclamei num tom de voz que queria mostrar determinação:

-Não, mãe, agora não tenho fome.

-Queres descansar? Não tenho fogo porque tem chovido a cântaros nos últimos dias e não tenho podido ir ao monte apanhar lenha. Nem tão pouco tenho encontrado bosta nos caminhos. O gado não sai e os cães antecipam-se. Se queres, preparo-te a esteira e a manta. Estão um pouco sujas e até podem ter lagartixas. Têm servido de cama e cobertor ao Ramboia. Pobrezinho, com este frio anda sempre a tiritar.

Voltei a olhar o cão e li nos seus olhos desconfiança e medo.
-Preparo-te, pois, a cama – insistiu a minha mãe, sem sair da sua imobilidade.

-Não, mãe. Tenho que sair.

-E onde vais, filho?

-Vou até à vila. Tenho um assunto em vista, mãe.

-Ah, filho, se tens um assunto não o percas. Um assunto é coisa que não nos aparece todos os dias. A propósito, tu sabes que o Charneca está no serviço militar? Não parece o mesmo; agora está gordo. Come duas refeições por dia.
Na tropa tratam-no bem. Se tu não tivesses nascido tão fraco de peito, também terias sido soldado e com o dinheiro do pré poderias comprar cigarros. É tão bonito ver um homem fumar. Teu pai, quando cá estava, andava volta e meia com
o livrinho de papel e a onça nas mãos.
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Peguei na trouxa que havia deixado atrás da porta, temendo as lembranças da minha mãe acerca do meu pai, morto ou vivo, em terras da América, disposto a sair:

-Filho! - gritou ela, vendo que eu saía – Como faremos para pagar a tua taxa militar? De tudo o que me deixou o meu pai, só me resta esta casinha e não queria que ma tirassem.

-Não se preocupe, mãe. Eu me encarrego de pagá-la.

-Dizes sempre isso, filho. Deus te oiça desta vez.

-Até breve, mãe.

Fui-me afastando da casa, que depressa se foi delineando como um ponto minúsculo no horizonte. O Ramboia seguiu-me durante algum tempo, desconfiado e rezingão. Impelido pelo vento, parecia-me caminhar com um objectivo determinado, mas na realidade eu não sabia qual era. O cão adiantou-se uns passos numa retaliação de rosnidos de uma velha oliveira, após o que alçou a pata e sinalizou-o com a sua urina. À minha frente, desenhava-se, negra e húmida, a estrada nacional em cujo marco quilométrico se podia ler: Lisboa 307 K. Uma ideia a princípio indecisa, logo definitiva, foi-se formando na minha mente. Então, voltei-me para o Rambóia e disse-lhe:

-Vai ter com a patroa e cuida bem dela, porque está só e velha.

O cão olhou-me um instante, confuso; depois, reagindo, mostrou-me os dentes e dirigiu-me um rosnar de meter respeito, querendo significar: Vai-te depressa e não voltes aqui mais. E, a trote, pressuroso, retomou o caminho para casa.

O meu destino era Lisboa, Com as costas apoiadas no marco da estrada, fui desbobinando as minhas recordações sobre a vida na vila. Por ali passavam a certas horas do dia os camiões da Empresa Algarvia, rumo a Lisboa. Dos camionistas, o mais conhecido era um tal José Laranjeira, que se gabava de ultrapassar com a sua Chevrolet toda classe de veículos automóveis. Mais de uma vez o ouvira referir-se às suas façanhas ao volante, no Café da terra, terminando por dizer: Eu sou o “cow- boy” dos camionistas. Se ele passasse agora ao volante,
pedir-lhe-ia para me levar até à capital do país. Estava disposto a gabá-lo, a enaltecer as suas qualidades de camionista. O homem, além disso, era sensível ao elogio e não podia negar-se a levar-me. E, se não fosse ele, o motorista do primeiro
camião a passar? Se fosse outro mais renitente que não me quisesse ouvir? Bem, se
isso acontecesse, eu socorrer-me-ia de um tesouro que possuía e ao qual ninguém que o visse resistiria. Pensando nele, pus-me a desatar a trouxa, tirando para fora
umas botas de couro, enormes, brilhantes, de sola sintética. Coloquei-as à minha frente e, como sempre que tal fazia, quedei-me a contemplá-las, com enlevo. Aquelas botas tinham uma história. Teriam caminhado centenas de léguas palmilhadas por um tal Johnny.


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A história começou assim: Quando despertei, depois de ter dormido uma sesta num jardim sombrio de Rabat, descobri um soldado norte-americano estendido no largo de uma alameda, de cara voltada para o céu. Parecia curtir uma profunda
bebedeira, quiçá como protesto contra a lei seca que vigorava no seu país. A primeira coisa que me atraiu a atenção, foram as botas enormes, que deixavam adivinhar dedos disformes. O homem parecia um gigante, com mais de dois metros
de altura e de cor avermelhada. Talvez fosse um pele -vermelha ou um descendente dos vikings.

As botas do soldado impressionaram-me e actuaram sobre mim como um íman. Se as pudesse tirar, andaria calçado durante anos. Eram botas para mostrar e andar. Discretamente, fui-me aproximando do homem estendido. Estava completamente imobilizado, pois nada nele se movia. Parecia que estava morto. Se as pudesse sacar, pensava eu, porém, era arriscado. Se ele despertasse e me surpreendesse em flagrante, poderia até dar-me um tiro. Quem lhe pediria contas por ter liquidado um desempregado? É certo que eu poderia ameaçá-lo, no caso de ser surpreendido por ele, ou contar ao tenente que encontrava sempre ao meio-dia,
que ele dormira num jardim público. Porém, como fazê-lo entender, se não falávamos a mesma língua? A hipótese não me pareceu viável. Era melhor procurar outra solução para lhe tirar as botas.

Com os seus pios característicos, as cegonhas da Torre de Oudaia desceram suavemente, poisando junto do soldado bêbado, e dedicaram-se com parcimónia a
debicar em sua volta, Uma delas introduziu o bico num dos ouvidos, enquanto a outra poisou na ponteira de uma das botas, moveu-se em sua volta e levantou uma pata, como se se dispusesse a dormir deste jeito.

Com o sangue a bater alvoraçadamente, compreendi que aquele Johnny estava mesmo a dormir profundamente, que não dava conta dele e que nem um tiro de canhão naquele instante o faria acordar. O jardim parecia deserto, uma vez que nem o guarda se via nas proximidades Como um felino, acerquei-me rápido e decidido. As cegonhas, assustadas, levantaram voo. Tive, porém, um momento de hesitação, mas encorajado pelas circunstâncias propícias, saquei as botas de um golpe.

Uma hora depois, já eu ria no meu refúgio da cave, enquanto dava voltas àquelas botas maravilhosas, agora nas minhas mãos, pensando na cara que faria
o Johnny quando despertasse e se visse descalço.

Bem, se o motorista do próximo camião a passar rumo a Lisboa não fosse o José
Laranjeira, teria que me desfazer delas, mas em troca viajaria até Lisboa e comeria durante uns dias, até que o destino, ou seja lá o que for, decida outra
coisa. E era tão bom comer, devorar para não ser devorado, matar a fome que me roía as entranhas.

Repentinamente, ouvi o ruído de um motor. Levantei-me, meti as botas na trouxa e coloquei-me em plena estrada, com os braços abertos, quase encandeado pela luz forte dos faróis de um camião que já dobrava a curva.

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