Era Inverno e a noite fez o Colégio Militar mergulhar numa escuridão gelada. Vestido só com um fato de banho, R. foi molhado com água fria, levado para um local isolado e deixado em sentido. Tinha apenas 13 anos e sentiu frio. Frio e medo das ratazanas. Durou apenas uma hora, no final de 2005, mas uma hora assim não se esquece facilmente. Em Janeiro deste ano, ao ser ouvido como testemunha de colegas vítimas de maus tratos, recordou o castigo mais violento. Ao mesmo tempo que se apressou a sublinhar a sorte: ser "dos poucos" que nunca foi agredido no colégio.
Episódios como o de R. são normais no Colégio Militar. Percebe-se no processo de investigação que conduziu à acusação de oito antigos alunos. Só quatro queixas foram consideradas suficientemente fortes para seguirem para tribunal, mas nos últimos três anos as participações foram muitas. Continuam a chegar às autoridades. Ou ficam a meio caminho, na direcção da escola. No início do ano, quando foi ouvido pelos investigadores, o director, major-general Raul Passos, explicou que os castigos por alunos são totalmente proibidos e as situações irregulares investigadas. No ano lectivo anterior, exemplificou, foram aplicadas nada menos de 600 punições.
Disciplina e organização são palavras de alta patente no Colégio Militar. Os alunos organizam-se em companhias de 100 alunos, que por sua vez se dividem em pelotões de 20 ou 30 e secções de 10. Cada nível tem um graduado. Cada companhia um comandante. Seleccionados entre os finalistas, sujeitos a provas e a nomeação formal. E a "elevada responsabilidade que cabe aos alunos graduados", escreveu o subdirector à mãe de um dos alunos agredidos, é uma "mais-valia do colégio" e contribui "de forma significativa na formação da personalidade e carácter" dos mais novos.
Na mesma carta, o coronel Portela Ribeiro admitia que se trata de uma intervenção "particularmente difícil" e sublinhava que os alunos em grupo se comportam de forma diferente do que é normal individualmente, "pelo que o controlo nem sempre é tão eficaz como seria desejável". E terminava com uma conclusão pouco tranquilizadora: não é possível assegurar que incidentes não se repitam.
Tanto assim que se repetiram. Dos quatro alunos em quem o Ministério Público encontrou provas de maus tratos, dois são irmãos. O mais velho foi agredido em Fevereiro de 2007 e ficou com lesões permanentes no ouvido. Em Março deste ano continuava com medicação e apoio psicológico, dado existir "relação entre as cefaleias e as consequências psicológicas da agressão de que foi vítima", explica um dos muitos relatórios clínicos.
Em Janeiro de 2008, o irmão mais novo foi sujeito a exercício físico violento e passou três meses em recuperação - um em cadeira de rodas, dois com canadianas. Uma segunda agressão deixou os pais "ansiosos e com dificuldade em tomar decisões". Com a referência de um pai militar, primeiro-sargento na reforma, os dois adolescentes acabaram por continuar no colégio, onde cada mensalidade está fixada em 681 euros.
Um processo interno resultou em cinco dias de suspensão para os agressores. Um castigo leve para a culpa, considerou a mãe. O desapontamento e a tristeza valeram-lhe de pouco: o regulamento (vulgo guia do aluno) indica que das decisões do director, em matéria disciplinar, não cabe recurso.
Punidos internamente, os oito arguidos acusados de maus tratos, com idades entre os 20 e os 25 anos, aguardam agora o exame final. O que é indiciado por mais crimes, R., assegurou aos investigadores que os castigos são "hábito normal" do Colégio Militar. Não constam do regulamento, mas estão escritos nas entrelinhas. Ser graduado é ser responsável pelos mais novos, no seu caso 111. E quando os da sua companhia faziam erros, os oficiais chamavam-no a si e aos outros graduados à atenção, "para tentarem disciplinar os alunos".
O dicionário interno explica os castigos "instituídos". Completas: sucessão de flexões, pulo de galo (saltos de cócoras) e abdominais. Firmezas: exercício físico em simultâneo por todos os colegas. Apresentações: vestir e despir num curto espaço de tempo. E um dos mais graves, substantivo feminino escrito em letras gordas: chapada de luva castanha.
R. só entrou na zona cinzenta no segundo período de 2007. A suspensão de cinco dias, pena mais severa a seguir à expulsão, manchou-lhe um currículo de distinções e elogios. Um exemplo a seguir pelos camaradas mais novos. Conduta irrepreensível. Muito empenhado e responsável. Excelente prestação escolar. Sucessivas medalhas de prata de aplicação literária e de aptidão militar e física. Prémio Adido Exército do Brasil.
Os excessos que envergonham um colégio com 206 anos de história são minimizados pelo Exército, mas o porta-voz, Helder Perdigão, admite que a falta de vigilantes adultos é um problema. "É público que o Exército tem vindo a reduzir o seu pessoal civil, não é exclusivo do Colégio Militar. Muitos funcionários reformaram-se e não foram substituídos." O problema, garante, "já foi transmitido à tutela, a quem caberá resolver".
Garcia Pereira, que representa os dois irmãos agredidos, diz que hoje existem menos de 20 vigilantes, quando há duas décadas eram 200. Os alunos ficam "completamente sozinhos e entregues aos mais velhos, os graduados", lamenta. O advogado critica ainda a direcção, que responsabiliza pelo "grande clima
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