quarta-feira, 28 de outubro de 2009

REZAR É FÁCIL

SOBRE O PADRE QUE É ACUSADO DE TRÁFICO DE ARMAS( é?)



Foi detido a seguir à missa, ainda na sacristia, no domingo da manhã em Covas do Barroso, uma aldeia no meio dos montes de Boticas, distrito de Vila Real. Foi assim que a história do padre Fernando Guerra transpirou. Mas, antes de sair nos jornais, já muitos conheciam o sacerdote e suspeitavam dos seus alegados negócios de compra e venda de pistolas e outras armas. Dizem que foi assim que fez fortuna. Que não soube parar quando tinha os bolsos já cheios, quatro ou cinco carros na garagem e várias casas espalhadas. Que, cometendo o pecado mortal da ganância, o "padre pistoleiro acabou por ser tramado".Adriano Miranda (arquivo)


Uma das igrejas de Covas do Barroso, a aldeia onde Fernando Guerra é padre há três décadas.
Com 74 anos e há três décadas na mesma paróquia, vai aguardar julgamento em casa, com termo de identidade e residência, proibido de comprar e usar armas. O sorriso de domingo foi apagado pelo cansaço de segunda-feira à noite, após um longo interrogatório no tribunal. Ontem regressou ao trabalho e rezou uma missa encomendada.

Mas regressemos a domingo. A missa começou às sete com muita chuva cá fora e pouca gente dentro da igreja na freguesia com 300 habitantes, um terço dos quais tem mais de 70 anos. Aos outros as vindimas roubam tempo e a outros ainda a troca das horas baralhou os relógios. A proprietária do café Palifrão foi a primeira a sair. "Ainda estavam a cantar, quando saí para ir abrir o café. Mas nem vi jipes, nem nada, como contam. Vi dois ou três homens à civil ali à espera e fui à minha vida", conta Glória Alves. Aos homens à civil juntaram-se alguns jipes e muitos elementos da Guarda Nacional Republicana que cercaram o adro da igreja. "Dizem que parecia o Iraque. Acho que não era preciso tanto", confirma o presidente da junta que, como é hábito, faltou à eucaristia.

Cooperante e sorridente, o padre Fernando Guerra foi levado da igreja para casa, ali ao lado, só com o cemitério no meio. Dentro da casa de pedra, enquanto os militares da Guarda Nacional Republicana encontravam armas ilegais na sua posse, quis telefonar para o posto público de Canedo, para avisar as gentes que o esperavam que não ia rezar a missa das oito. Sobre as armas admitiu que apenas uma estava legal e que outras seriam heranças. Para as que sobravam não tinha explicação. No total foram apreendidas 16 armas ilegais entre pistolas, revólveres e caçadeiras, milhares de munições. Saiu de casa ainda a sorrir, de óculos escuros, e foi levado para a esquadra, com outros três homens detidos no âmbito da mesma investigação. Telefonou depois para o presidente da junta de freguesia de Covas do Barroso, a quem pediu que lhe levasse os medicamentos esquecidos. Não lhe chegou sequer a agradecer o favor. "Estava calmo. Mas estava baralhado e nem agradeceu. Qualquer um ficava baralhado, não é?", diz Olímpio Gomes, o autarca da aldeia, incomodado. "Acaba por ser uma coisa que nos envergonha."

Com a perspectiva de passar a noite na esquadra, o padre quis então que o deixassem ir rezar uma missa de sétimo dia encomendada para segunda-feira de manhã em Covas do Barroso. Que o levassem lá e o trouxessem de volta a seguir. Mas não. Impedido de cumprir o dever, esperou pelo interrogatório. Na tarde de domingo, o caso do padre já aparecia na televisão. Foi assim que alguns fiéis da vizinha Canedo souberam do motivo da falta do sacerdote.

Quando chegou ao tribunal, o padre levava vestido o mesmo sorriso e os mesmos óculos escuros. Desta vez, era esperado por algumas dezenas de habitantes de Covas do Barroso e outras aldeias onde deixou marcas. Aí, chamaram-lhe "padre pistoleiro", pediram justiça e criticaram a hora do acerto de contas: "Custou a entrar lá dentro, mas agora vai." O presidente da junta de Couto de Dornelas contava a quem o quisesse ouvir que, nos tempos em que o padre dava aulas de religião e moral na escola secundária de Boticas, havia armas em cima da mesa do professor e maços de notas para contar à vista dos alunos. Fernando Guerra saiu horas depois do tribunal, cansado. Já era noite, quando regressou a casa de boleia, apesar de o seu Mercedes ter sido levado para Boticas no dia da detenção. Foi posto em liberdade, mas todas as semanas terá de se apresentar em Boticas. Até ao dia do julgamento.

Na segunda-feira, enquanto esperava para prestar contas à justiça, as histórias polémicas que envolvem o padre faziam eco em Boticas. Com mais ou menos pormenores, contava-se o caso da agressão de Fernando Guerra ao coveiro no cemitério num dia de desentendimento por causa de um funeral. O coveiro terá sido agredido com uma chave e desceu a rua a escorrer sangue. Mas a discussão já vinha de casa do defunto e a vítima também não terá sido inocente no caso, justificam os mais crentes. Lembravam ainda, com mais ou menos ironia, o dia em que o sacerdote afirmou ter sido alvo de um atentado nunca provado que envolveu tiros ao seu carro e até um ferimento na mão. Vítima ou um embuste do padre? Havia ainda o registo da polémica sobre a disputa entre o padre e a junta de freguesia pela posse da Casa do Santo, em Couto de Dornelas, que terá tido como último episódio uma abaixo-assinado da população a pedir o fim dos seus serviços de missas e funerais.

Os assuntos do padre Fernando foram tema de conversa no dia seguinte à detenção. Mais nesse dia do que nos outros. A verdade é que nos outros dias cada um tem a sua vida por ali. Sobre o sacerdote faz-se um refrão na cantiga dos lugares, nem amigo, nem inimigo. Sim, tem armas. E daí? "Se formos prender todos os que têm armas em casa, fica pouca gente por aqui. Há muitos caçadores e, ao que sei, ele, de vez em quando, caça", ouve-se no café da aldeia, onde duas pessoas encostadas ao balcão sorriem às perguntas, envoltos numa nuvem de moscas. Disparava uns tiros no quintal? E daí? "Eu também faço isso no fim de ano e não vou preso por isso." Quanto ao resto: "Isso já não sei, nunca vi", "eu cá não tenho o que dizer dele", "não tenho queixa". No outro café da aldeia, o Palifrão, Glória pede desculpa por ter a camisola suja, enquanto limpa os óculos embaciados. "Pouco ou nada sei", diz a proprietária do café, mais preocupada com o jejum dos clientes do que com os negócios do padre. A conversa é interrompida duas vezes. Uma para atender o telefone e responder da mesma forma vaga às perguntas de outro jornalista à distância e outra para preparar duas sandes de queijo aos famintos, oferta da casa. "Queixa dele, não tinha nenhuma. A minha conversa com ele era pouca. Não vou sempre à missa, mas, digo-lhe, as palavras dele às vezes comovem a gente" "Padres há muitos"

Na rua, Profetina Barros espreita pelo portão velho, em frente à casa de pedra do padre Fernando Guerra. Ouve o presidente da junta a falar e pára de cara desconfiada debaixo de um barrete de lã. Por fim, leva os curvados 88 anos pelo caminho do carreiro de terra em silêncio até ao beiral de uma porta e daí atira. "Padres há muitos, se ele não voltar, há-de vir outro qualquer." Mas gosta do padre dona Profetina? "Se gosto ou não gosto, sei-o eu", dita em tom de desafio. E nós aceitamos. Diga lá, intercede Olímpio Gomes. "Digo porquê? Não me estou a confessar." A conversa com o presidente da junta continua e, por fim, Profetina já apoiada na carrinha do autarca concede: "Gosto e sempre gostei. Nunca fui bater à porta dele que não fosse servida." O autarca passa os dedos grossos pela testa, apoia-se na carrinha onde leva as bilhas de gás vazias que trocou em casa de Profetina, e admite que "havia quem se perguntasse como ele teria tanto dinheiro. Falava-se nisso, de vez em quando". Olímpio não sabe, nem quer saber as contas do padre mas constata que "carros ele tem pelo menos quatro, dois jipes, um Mercedes e uma carrinha". Mas isso, frisa, "é lá a vida dele". "Se me voltar a ligar, volto a ir lá. Nem que seja à prisão. O que faço por ele, fazia por qualquer um daqui." Os olhos e o sorriso franco do homem fazem com que seja impossível duvidar.

Na aldeia vizinha de Canedo, onde no domingo esperavam o padre para a missa das oito, Aníbal ri-se. À sombra das pedras, de camisola grossa com torcidos e boné de xadrez, é mais um dos habitantes dos montes que diz não estar preocupado com o futuro do padre. "Ele tem meia dúzia de carros e várias casas", assegura. Ao lado, um homem enfurecido vai gritando insultos ao sacerdote. Que não lhe baptizou o neto porque o filho não era casado e, ainda assim, lhe levou "sete contos e meio" pela declaração que o remeteu para outro padre. Aníbal continua: "Dizem que era rico. Eu nunca vi o dinheiro dele, mas olhe que ele viu bastante do meu." E quanto à questão que agita a região sobre quem teria denunciado o padre, Aníbal parece certo: "Foi algum amigo que ele tinha." O outro homem, irado, sobe a rua em frente a agitar os braços para sentenciar: "Por mim, padres era um por concelho e todos capados!"

"Toda a gente sabia na região que se metia no que desse dinheiro", ouve-se longe das aldeias onde o padre reza missa. A fama do homem nascido em Gralhas, em Montalegre, transborda dos montes. Arriscou de mais e, depois da fortuna garantida, devia ter-se desfeito dos negócios, dizem uns que preferem não envolver o nome nesta "embrulhada antiga".

Nem o bispo de Vila Real será capaz de meter as mãos no fogo. Joaquim Gonçalves disse ao Jornal de Notíciasque as armas do padre poderiam estar ligadas "ao vício da caça entre o clero". "Admito que, embora sendo ilegal, ajudasse a fornecer os que caçam. É ilegal, não é bonito, mas, nesse contexto, é humanamente compreensível (...). Se for além desse fornecimento para caça e se se estiver perante um caso de terrorismo ou de uso para a violência, aí o caso é sério e merece ponderação", acrescentou o bispo, que anunciou que, para já, o padre Fernando Guerra mantém-se à frente da paróquia.Missa vazia

Ontem à tarde, as conversas acalmaram. Os portões da casa do pároco estavam abertos. Lá dentro apenas o cão ladrava face à presença de estranhos. Dizem-nos que o padre não está: "Saiu depois da missa." O padre chegou tarde na noite anterior, depois de ter sido ouvido no tribunal, mas hoje de manhã voltou ao trabalho. "Antes das nove já estava o sino a tocar para a missa", conta Napoleão Rebelo, enquanto se equilibra entre a enxada e uma bengala. À celebração só compareceram "quatro ou cinco pessoas". "Acho que ninguém estava a contar que houvesse missa." Era uma missa de 7º Dia em memória de um habitante da aldeia. Devia ter acontecido na segunda-feira, mas o pároco estava no tribunal. Ontem compensou os fiéis.

Em Covas de Barroso o dia foi calmo. "Foi a mais comum normalidade", elabora a mulher do presidente da junta. Olímpio Gomes, há mais de 20 anos no poder, fala num dia "normal". As pessoas fizeram a vida habitual. "Quase nem falaram do assunto", assegura o autarca. Diz que a população está à espera "que a Justiça decida" o futuro do padre, mas que até lá tudo "continuará como era".

Maria Helena, dona do Nosso Café, um dos dois da aldeia, confirma. "Foi um dia como os outros. As pessoas nem falaram muito do que se passou", assegura. Lembra os 30 anos que o padre leva na freguesia e afirma que "não tem que dizer" do religioso. "Se ele tinha problemas, era lá com ele, porque com a gente da aldeia nunca houve nada", afirma.

Napoleão Rebelo recorda uma história diferente. "Havia dias em que isto parecia uma carreira de tiro", afirma, apontando a casa do padre. Conta que o pároco experimentava armas nos terrenos anexos e que "até vinham uns rapazes de fora para ver as armas com ele".

Junto deste homem o padre não goza de boa fama. "Punha os cavalos a pastar no adro da igreja, nem parecia que acreditava naquilo que dizia na missa." Com Samuel Silva

Sem comentários: