sábado, 14 de novembro de 2009

MIGUEL SOUSA TAVARES NO "EXPRESSO"

Relatório de Outono da Comissão Europeia sobre a conjuntura económica portuguesa contém três boas notícias já para o ano de 2010. A primeira é que o crescimento do PIB será retomado, devendo atingir os 0,3%, depois de ter sido negativo em 2,9% neste ano (acima da média da UE, que foi de 4% negativos, mas a crescer menos de metade do que vai crescer o PIB na UE); a segunda, é que o desemprego não aumentará, mas também não diminuirá, mantendo-se nos actuais 9%; a terceira é a retoma em terreno positivo das exportações, depois de uma queda para menos 14% em 2009. E fim das boas notícias.

Agora, a factura. O défice público, segundo Bruxelas, vai acabar o ano em 8% do PIB - bem acima dos 5,9% anunciados pelo Governo, e, pior ainda, vai manter-se assim em 2010 e aumentar para 8,9% (uma barbaridade!) em 2011. Em consequência, a dívida do Estado português, que representava já 66% do PIB em 2008 e que passou este ano para 77,4%, passará em 2010 para 84,6%, e em 2011 para uns inacreditáveis 91%. E basta de números, fiquemos apenas com esta realidade: dentro de dois anos, seria necessário alocar praticamente toda a riqueza produzida no país durante um ano inteiro para saldar a dívida pública - pondo fim ao pagamento de juros que aos poucos vai sugando o país, transmitindo à geração seguinte um Estado endividado até ao pescoço. Teixeira dos Santos justifica o descontrolo do défice (derrapagem é adjectivo que já não chega para caracterizar a situação) com a crise económica: o que aconteceu, diz ele, não foi o aumento da despesa do Estado, mas sim a diminuição da receita fiscal. Com certeza que tem razão, mas a despesa do Estado subiu também - em parte motivada pelo acréscimo de prestações sociais, como o subsídio de desemprego e o rendimento mínimo - e atingiu o patamar psicológico dos 50% do PIB. Metade de toda a riqueza produzida no país inteiro pelas empresas e pelos trabalhadores é gasta pelo Estado.

Portanto, estes são os dados: temos um Estado que consome metade do que produzimos, cuja riqueza malbaratada impede os cidadãos de melhorarem a sua própria situação, e que, mesmo assim, todos os anos se endivida mais, porque a receita que tem e que tanto nos custa a pagar (aos que pagam...) não chega para os seus gastos, sempre crescentes. Por isso, endivida-se, ano após ano, e o serviço da dívida, os juros que paga, são já parte significativa da sua própria despesa. É como uma família em que um dos cônjuges trabalha e traz riqueza para casa e o outro vive a gastá-la e a acumular dívidas, que um dia passarão aos filhos, se antes a própria família não decretar insolvência. Não me interessa muito saber se a solução há-de ser socialista ou neoliberal, trata-se de uma questão de boa-fé. Não é justo nem sustentável indefinidamente que metade dos portugueses continue a trabalhar, investir, inovar e produzir riqueza para que a outra metade trate de a gastar alegremente e ainda exija sempre mais.

É a esta luz que se torna obrigatório meditar nas tais 'grandes obras públicas' que o Governo nos propõe como grande medida de política keynesiana e com o entusiástico apoio da CIP e da Associação dos Construtores de Obras Públicas. Quando, como já aqui o escrevi, tropeço em coisas como o contrato celebrado entre o Porto de Lisboa (Estado) e a Liscont/Mota-Engil para o Terminal de Contentores de Alcântara, eu tenho a penosa certeza de que estou pessoalmente a ser roubado pelos advogados do Estado e a benefício do sr. Mota - decerto uma estimável pessoa que não tenho o prazer de conhecer, mas que também me dispenso de ajudar a enriquecer com o dinheiro do meu trabalho. E o mesmo quando vejo as acções da Mota/Engil subirem 13% em bolsa no dia seguinte às eleições legislativas terem confirmado novo Governo PS. Ou quando constato que, semanas depois, a Mota/Engil ganhou mais um concurso de construção e concessão de exploração de uma nova auto-estrada - a do Pinhal Interior (alguém me pode informar onde fica isso ou para que serve?). Ou quando leio que foi alterado o regime das concessões rodoviárias, seguindo o modelo do contrato para o Terminal de Contentores de Alcântara, onde todo o risco do negócio é assumido pelo Estado e os privados ficam só com lucros garantidos ou indemnizações compensatórias. Ou quando vou sabendo pelos acórdãos do Tribunal de Contas (que, por si só, deveriam cobrir de vergonha qualquer governo), que se tornou prática corrente dos concursos de empreitadas públicas licitar com um preço imbatível e, uma vez ganho o concurso, subir o preço muito além do da concorrência, invocando toda a ordem de pretextos.

Perguntem-me se eu confio neste Estado e neste Governo para lançar, em nome do 'interesse público', as empreitadas das grandes obras como o novo aeroporto de Lisboa, o TGV ou a nova ponte rodo-ferroviária sobre o Tejo, em Lisboa? Não, não confio. E não só porque se trata de obras inúteis e até prejudiciais a Lisboa, como a ponte ou o novo aeroporto, mas porque, na situação financeira em que nos encontramos, são quase obscenas. E, depois, porque não tenho a mais pequena fé de que os custos não disparem, que não haja negócios e adjudicações de favor, tráfico de influências, grandes oportunidades de enriquecimento para a meia dúzia de sociedades de advogados de Lisboa que vivem disto e, no final de tudo, que alguma das obras anunciadas se sustente a si própria e não venha a ser antes mais uma fonte de despesa pública a perder de vista.

Oiça, José Sócrates: o país que trabalha, que estuda, que inova, que arrisca e que dá trabalho a outros; o país que não foge ao fisco nem tem offshores e que paga impostos até por respirar; que não enriquece na bolsa nem vive a mendigar subsídios do Estado; que paga a escola dos filhos, as suas despesas de saúde e o seu plano de reforma, nada esperando da Segurança Social; o país que tem pudor em fazer negócios escuros com as autarquias ou as empresas públicas; o país que ainda não apanhou um avião para o exílio mas que também não deseja um lugar nos aviões das suas visitas de Estado a Angola, esse país está a ficar farto. Acredite que está. Não se manifesta nas ruas nem se organiza em 'Compromissos Portugal', que não são compromisso nem são Portugal. Mas existe e um dia destes explode. Nesse dia, o dr. Teixeira dos Santos vai-se espantar por descobrir que, mesmo já sem crise, a receita fiscal não há maneira de voltar a subir. Porque o animal raro conhecido por otário se terá extinto de vez.

Faz agora um ano que, 'para evitar o risco sistémico', o Governo nacionalizou os prejuízos do BPN. Um ano depois, a conta para os contribuintes já vai em 3,5 mil milhões de euros - três mil milhões e meio de euros! Vale a pena fazer as perguntas, em jeito de balanço: se o risco era sistémico, isso quer dizer que toda a banca funcionava no esquema de vigarice institucionalizada do BPN - foi isso que se quis esconder? Se o risco era sistémico, porque é que a banca privada não ajudou a banca pública a acorrer ao BPN? E, agora, tendo gasto mais dinheiro com o BPN do que gastou a pagar os subsídios de desemprego a meio milhão de desempregados, que lição, se é que alguma, extrai o governo dessa aventura? Que mensagem, se é que alguma, lhe ocorre dar aos pagadores de impostos?

Texto publicado na edição do Expresso de 7 de Novembro de 2009





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