quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A OUTRA FACE DO PROBLEMA

Face Oculta.




Quando, nos tribunais americanos, um juiz manda os membros do júri "desconsiderar a última observação" do advogado, podem eles riscá-la da memória? Não. Por isso é que o advogado a fez: mesmo sendo "ilegal" e retirada do processo, a observação já foi ouvida por quem decide o julgamento. As escutas a Sócrates são a mesma coisa: ilegais, destruídas mas conhecidas. O mal está feito?

Muito mal está feito, por exclusiva responsabilidade do que se decidiu denominar de "sistema de Justiça". Se fosse "sistema", funcionava como um corpo só, não como uma hidra em que cada cabeça tenta morder as outras até à decapitação final. A única coisa sistémica é o problema de um conjunto de poderes, contrapoderes e poderes do contra que estraga mesmo o que está bem feito.

Bem feito está o caso "Face Oculta", de que sintomaticamente deixou de se falar. O "sistema" entrou num jogo de "o dobro ou nada" e arrisca-se a acabar com "nada".

No início, era o processo "Carril Dourado", em que estava envolvido Manuel Godinho e a Refer, por suspeitas de roubo de material que dificilmente o pode ter sido sem pessoas "de dentro". A investigação da Judiciária foi lenta mas foi bem feita, apanhando afinal uma teia de corrupção em várias empresas, quase todas do Estado: nasceu o caso "Face Oculta", maior e mais tentacular que o primeiro. O processo sublima-se com as escutas entre Armando Vara e Sócrates, surge o caso "Escutas", suspeitas de tráfico de influências e de intervencionismo no controlo da Comunicação Social.

O problema escalou até se tornar auto-destrutivo. É incrível como uma investigação aparentemente tão bem feita como a da "Face Oculta", com milhares de escutas, indícios, pormenores, dezenas de arguidos, entregue à Procuradoria como "basta levar ao forno", cometeu erros crassos no final com o primeiro-ministro, o que ameaça descredibilizar, em ricochete, todo o processo.

Aquilo que aconteceu na semana passada foi patético para a imagem da Procuradoria e do Supremo, e mortal para a presunção de inocência dos suspeitos. No fim, as escutas a José Sócrates são declaradas ilegais e nulas. Nunca deviam ter sido feitas e, tendo-o sido, não há nelas confirmação dos indícios de "Atentado contra Estado de Direito" por parte de José Sócrates. Di-lo o presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Mas o País inteiro já leu nos jornais os assuntos de que Vara e Sócrates falaram. A Comunicação Social, confirmando que para o Governo há "o nós e os outros". O negócio da TVI, de que afinal o primeiro-ministro sabia. A Controlinveste, a Ongoing. E, mais grave, a utilização de um banco privado, cotado, para fins políticos. O que se faz agora com esta informação?

Faz-se política. A nossa memória não é como as dos computadores, não dá para apagar bocados. O caso escutou como não devia ter escutado e extravasou com violação interessada do segredo de justiça para os jornais, incinerando a opinião pública. Fica a suspeita que o "sistema" quis fazer justiça por mãos alheias, de que as escutas foram não só mal feitas como podem ter sido feitas por mal. A Justiça tem de ser independente mas, para sê-lo, tem de o merecer. Se se comporta como garotada, perderá essa independência, precisamente para os políticos que cismam que a Justiça não sabe tratar de si própria. Mas mesmo com o ónus sobre a Justiça, sobra o rasto sobre os suspeitos, os prejudicados e os vitimizados. José Sócrates pode processar quem o prejudicou. Mas não pode mandar o País "desconsiderar" o que leu.



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