Do Coliseu ao Cairo
por MARIA DE LURDES VALE
Na sexta-feira à noite, os Deolinda tocaram no Coliseu de Lisboa.
No final, no último encore, sentiu-se um arrepio na sala. Foi comum.
Sentiu-se que foi comum. E de tal forma assim foi que todos os que ali
estávamos começamos a levantar-nos aos poucos e a aplaudir, sem parar,
o que nos transmitia a voz - que grande voz! - de Ana Bacalhau,
vocalista deste grupo que tão bem canta a vida portuguesa.
Alguns de nós sabíamos que, lá fora, neste mundo a que todos
pertencemos, havia quem, da Tunísia ao Egipto, estivesse, nas ruas, a
lutar pela liberdade com o fim de alcançar uma vida mais digna. Outros
saberiam mais. Que esse grito de revolta, que está a fazer história em
frente aos nossos olhos, foi primeiro ensaiado através das redes
sociais, da Internet, e do espaço virtual que todos partilhamos. Que,
no mês de Dezembro, em Sidi Bouzid, 260 quilómetros a Sul de Tunes,
Mohamed Bouazizi, um jovem licenciado de 26 anos, imolou-se pelo fogo
para protestar contra um velho regime de cleptocratas que não lhe
deixou outra alternativa que o seu próprio sacrifício. E que esse
sacrifício não foi em vão. O regime caiu.
Naquela sala do Coliseu de Lisboa, muitos mais saberiam muito mais coisas.
Que o que se passa nalguns países do Magrebe está a ter um
efeito-dominó e a contagiar o resto do mundo árabe.
Que são os milhares de jovens universitários, a quem nada mais resta
nos países onde nasceram que fugir em busca de um qualquer trabalho
clandestino na Europa ou nos EUA, onde é difícil entrar, que lideram
esta revolta.
Que na capital do Egipto há confrontos, mortos e feridos, tanques,
jactos de água, mas que nem por isso a rua deixa de ser o palco dos
protestos.
Que a chama foi acesa por um discurso histórico de Obama, em Junho de
2009, quando disse no Cairo que "todos nós partilhamos este mundo por
apenas um breve momento no tempo" e que "a questão é saber se queremos
passar esse tempo concentrando-nos naquilo que nos diferencia, ou se
estamos dispostos a um esforço, contínuo, para encontrar um terreno
comum e concentrar-nos no futuro que queremos para os nossos filhos, e
respeitar a dignidade de todos os seres humanos".
Naquela sala do Coliseu de Lisboa, a vocalista dos Deolinda, do alto
dos seus 33 anos, anunciou que a última canção era nova e que era
"dura" de ouvir.
Chama-se "Que parva que eu sou" e diz assim: "Sou da geração sem
remuneração e não me incomoda esta condição. Que parva que eu sou!
Porque isto está mal e vai continuar, já é uma sorte eu poder
estagiar. Que parva que eu sou! E fico a pensar, que mundo tão parvo
onde para ser escravo é preciso estudar..."
++++Que parvos que somos nós se não soubermos juntar-nos à revolta! +++++++
- LETRA
Sou da geração sem remuneração
E não me incomoda esta condição
Que parva que eu sou
Porque isto está mal e vai continuar
Já é uma sorte eu poder estagiar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Sou da geração "casinha dos pais"
Se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou sempre a adiar
E ainda me falta o carro pagar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Sou da geração "vou queixar-me pra quê?"
Há alguém bem pior do que eu na TV
Que parva que eu sou
Sou da geração "eu já não posso mais!"
Que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou
E fico a pensar,
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Responder Responder a todos EncaminharJosé não está disponível para bater papo
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