Memória precisa-se - *Inês Pedrosa**
Pior, antes do 25 de Abril, só os mortos
Os portugueses têm memória dos passarinho, e dos tontos. Podiam pelo menos
ter memória de andorinha, que essas voam para longe mas regressam todas as
Primaveras aos beirais, e constroem os seus próprios ninhos, com notável
empreendedorismo e competência, chilreando sem lamúrias. Segundo um
inquérito realizado no âmbito do Projecto Farol, 46 por cento da população
acham que "estamos pior do que antes do 25 de Abril". A coisa refina: para
58 por cento dos portugueses, estamos hoje pior do que antes da entrada na
Comunidade Económica Europeia, há 25 anos. Escusado será lembrar a este povo
voluntário da desmemória que no fabuloso final da década de 80 do século
passado, quando o maná dos fundos europeus caía diária e copiosamente do céu
sobre as nossas atarantadas cabecinhas (então lideradas pelo senhor que
sozinho consegue ser mais honesto que nós todos renascidos), a Europa era
considerada a mais linda das noivas. Sim: grande parte desse caudal foi
transformado em betão, cursos de formação da treta e luxos depois
abandonados (veja-se o simbólico Pavilhão de Portugal) - mas isso já não é
culpa da Europa. Sucede que a culpa à portuguesa é sempre dos outros: em
primeiro lugar, do mundo cruel; em segundo, dos governantes ferozes. E assim
o povo, acompanhado de alguma populista opinião, continua no seu triste
contentamento de se achar sempre pior do que nunca, à revelia dos factos e
números.
Basta um ligeiro alumiar das meninges: antes do 25 de Abril, para se ter
direito a tratamento hospitalar gratuito era necessário ter-se um documento
onde estava escrito "indigente", e hoje o Serviço Nacional de Saúde é uma
realidade universal. Antes do 25 Abril, a educação era um privilégio de
ricos - o tão gabado ensino de "excelência" não só não era assim tão bom
(leiam os jornais desse tempo e avaliem, além dos ruidosos silêncios da
censura, os rodriguinhos da ignorância pura e do deslumbramento pacóvio que
lhes enchiam as páginas, no lugar da informação) como deixava a maior parte
da população de fora. Hoje a escola pública é para todos - e está,
infelizmente ainda desde há poucos anos, aberta todo o dia. Poderíamos
também enumerar, entre muitos outros dados essenciais, a descida vertiginosa
da mortalidade infantil, o aumento da esperança de vida, o decréscimo dessa
miséria atávica que é a gravidez na adolescência. Falta cumprir muito? Sem
dúvida. Mas pior do que antes do 25 de Abril? Só um esquecimento comatoso de
ingratidão poderá afirmá-lo. E curioso, aliás, que os mesmos inquiridos
manifestem em simultâneo um desprezo avassalador (chega aos 90 por cento)
pela classe política e a convicção de que é à dita classe (isto é, ao
Estado) que cabe o dever de assegurar o desenvolvimento e a competitividade
do país. Por outro lado, a percentagem da população disponível para a
intervenção cívica activa não excede os 31 por cento - e mais de metade dos
portugueses manifestam-se indisponíveis para lançar um negócio próprio. A
segurança no emprego é central para a grande maioria e 83 por cento dos
inquiridos consideram que a responsabilidade pelo sucesso de uma empresa é
do empresário, ou seja, do patrão. Ah, nação valente e imortal!
Antes do 25 de Abril, de facto, a segurança do emprego era melhor (para os
que o tinham, e o passavam em testamento), a Justiça era extraordinária (os
tribunais plenários eram rápidos e eficientes), a saúde não tinha listas de
espera (eram saudavelmente substituídas pela relva dos cemitérios) e quem
queria ser empreendedor emigrava, não ficava cá a fazer sombra a ninguém.
Acresce que a fome - a fome real, aquela que as crianças analfabetas sentiam
de manhã à noite, porque nem tinham uma escola que lhes desse duas refeições
por dia - era, por si só, um grande estímulo ao empreendedorismo no
exterior.
Os resultados deste inquérito demonstram que o temperamento passivo,
timorato e autodesresponsabilizador criado pelas ditaduras demora muito a
alterar-se. O paternalismo providencialista é menos uma maldição do que um
vício. Portugal continua toxicodependente dos poderes. Também é por isso que
eles não funcionam melhor: porque deles se espera tudo, mesmo quando se
desespera. Esperar, desesperar são verbos fáceis. Fatais - mas
desgraçadamente cómodos. A época do comodismo de olhos fechados acabou de
vez. Já acabou há muito tempo, não só em Portugal. A democracia dá mais
trabalho do que ditadura, pois é. Uma chatice.
Inês Pedrosa escreve de acordo com a antiga ortografia
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