Manifesto
Em plena crise financeira, somos chamados a eleger um novo governo. O que fazer? Votamos “como de costume” e esperamos resignadamente por um governo de coligação PS-PSD-CDS que virá aplicar a austeridade selvagem imposta pela UE/FMI?
Ao contrário do que nos dizem a toda a hora na televisão, o programa de austeridade imposto pela EU/FMI não vai retirar o País da crise. Quem está atento sabe que a Grécia e a Irlanda viram agravar o desemprego e as suas dívidas. Mais ainda, se quisessem vender hoje títulos de dívida pública, teriam de pagar taxas de juro tão ou mais elevadas que as do momento em que pediram “ajuda”.
Políticos e comentadores de economia insistem que é inevitável, que temos de acalmar os mercados, mesmo que nos afundemos numa espiral de cortes na despesa pública, recessão, mais desemprego, mais dívida, novos cortes na despesa pública, até não se sabe quando. Outros explicam que, por já não termos moeda própria para desvalorizar, teremos de reduzir os salários, as pensões de reforma e os preços em vinte ou trinta por cento para que a economia seja competitiva e possa crescer. Estranhamente, nunca apresentam os exemplos de aplicação bem sucedida de tal política.
Os problemas económicos, financeiros e sociais que vivemos têm causas externas e internas que se entrelaçam. Por um lado, a UE recusa criar um orçamento federal e um tesouro que emita dívida europeia, criando assim as condições perfeitas para que os especuladores ponham em causa a sustentabilidade da zona euro. Por outro lado, os partidos que têm governado o País são também responsáveis pela presente crise através das políticas erradas que executaram e da gestão ineficiente ou pouco transparente dos recursos públicos, por vezes em suspeita convergência com poderosos interesses privados.
Portugal não pode continuar a ser adiado. Um grupo de cidadãos, com e sem filiação partidária, após uma ponderada reflexão sobre a gravidade da presente situação e os bloqueamentos políticos que impedem a sua superação, tomou a decisão de levantar a voz e dizer bem alto que podemos seguir outro caminho. Acreditamos que é possível construir uma «Convergência e Alternativa» de ideias, pessoas, organizações, movimentos sociais e partidos da esquerda que seja capaz de oferecer ao País um governo de ruptura com a austeridade selvagem que a UE vai impor. Urge lançar um debate público sobre os valores, princípios e linhas de força de uma política económica alternativa.
Para apoiar esse debate, está em preparação um texto programático que constituirá uma referência para todos os que queiram empenhar-se na construção dessa «Convergência e Alternativa». No entanto, face à importância que, no debate eleitoral que se avizinha, deve assumir a apresentação de verdadeiras alternativas, decidimos avançar de imediato com a publicação das nossas opções sobre quatro problemas cruciais: Portugal e a zona euro; o problema da dívida; desemprego; desigualdade e pobreza.
1. Portugal e a zona euro
Após a adopção do euro, o crescimento da nossa economia foi anémico e em larga medida financiado por crédito externo. Taxas de juro baixas estimularam na periferia da zona euro os negócios a crédito, alimentaram a especulação do imobiliário e produziram uma inflação superior à dos países mais desenvolvidos. Entretanto, a UE abriu o mercado interno aos produtos dos países com salários muito mais baixos como contrapartida da abertura desses países às importações dos produtos europeus mais sofisticados.
Hoje o País não dispõe da desvalorização cambial, o principal instrumento de política usado para superar as anteriores crises. Como se tal não bastasse, a UE consagrou uma política orçamental perversa porque impõe a redução da despesa pública nos períodos em que é necessário aumentá-la para reanimar a economia. O pacote legislativo sobre a Governação Económica da UE reforça esta orientação e aplicará multas aos países que não cumpram a nova versão do Pacto de Estabilidade e Crescimento.
A deficiente arquitectura institucional da zona euro e uma especialização produtiva do País que não evoluiu o suficiente para evitar o impacto da abertura desregulada da UE ao comércio internacional, constituem, no seu conjunto, um enorme obstáculo à superação da presente crise.
É preciso dizer a verdade aos portugueses. O nosso endividamento não fica resolvido com o acesso ao financiamento da UE/FMI, já que este vem associado a uma política de austeridade brutal e a reformas que se propõem desmantelar a legislação que ainda confere alguma protecção ao trabalho. Com esta política pretende-se consolidar um modelo de competitividade baseado em baixos salários, em absoluta contradição com o objectivo estratégico que motivou a entrada do País na zona euro, passar a competir pela inovação com base em trabalho qualificado.
O primeiro passo para enfrentar a presente crise é reconhecer a sua principal causa interna, uma persistente fragilidade competitiva que se confronta com poderosos concorrentes num espaço de moeda forte gerida por um Banco Central preocupado apenas com o nível de preços nos países mais ricos. Após uma década de moeda única, Portugal entrou em divergência relativamente aos seus parceiros, liquidou capacidade produtiva na agricultura, nas pescas e na indústria, e passou a ter um nível de desemprego muito elevado.
Os promotores da «Convergência e Alternativa» são europeístas e entendem que apenas a via federal pode tirar a União Europeia da crise em que se encontra. Infelizmente, nas últimas décadas a UE incorporou nos Tratados alguns princípios de inspiração neoliberal que enquadram a política económica dos Estados-Membros e da própria União. Esta orientação ideológica, conjugada com uma configuração institucional que não fez acompanhar a moeda única de um verdadeiro orçamento, e de um tesouro responsável pela dívida europeia,
induziram uma fortíssima especulação nos mercados da dívida soberana dos Estados-membros com economias menos competitivas.
Por isso, entendemos que Portugal deve propor à Espanha, Grécia e Irlanda a criação de uma frente diplomática comum tendo em vista renegociar as respectivas dívidas e obter da UE derrogações ao Tratado que permitam a estes países adoptar políticas económicas favoráveis ao seu desenvolvimento, com destaque para uma forte política industrial e medidas de discriminação positiva para o sector exportador.
Caso não seja possível concretizar a cooperação entre os países da periferia da zona euro, ou no caso de rejeição das negociações por parte da UE, o País deve dizer à Comissão Europeia e ao Conselho Europeu que, para defender o interesse nacional, será obrigado a escolher uma via de ruptura com as normas de natureza neoliberal inscritas no Tratado da União. Nesse caso, o País teria de:
a) procurar apoios financeiros fora da UE; b) lançar uma política económica integrada tendo como objectivo alcançar o pleno emprego; c) suspender o pagamento da dívida pública e realizar uma auditoria no sentido de preparar decisões sobre a sua reestruturação.
A concretizar-se esta ruptura, Portugal estaria em melhores condições de voltar ao crescimento económico, o que permitiria reduzir mais facilmente o peso da dívida pública. Nessa hipótese, produzir-se-ia um grave conflito político com a UE. Embora desenvolvendo uma política económica autónoma, Portugal poderia manter-se na zona euro dado não existir no Tratado uma cláusula de expulsão. Um choque político desta magnitude mudaria a atitude dos restantes países da periferia da UE levando-os também a questionar uma arquitectura institucional que apenas admite políticas económicas neoliberais. Formular esta possibilidade
de ruptura é parte integrante da estratégia negocial que defendemos para que o País obtenha as derrogações de que precisa para se desenvolver.
2. O problema da dívida
O problema da dívida em Portugal reside no facto de ela ser sobretudo externa e muito mais privada que pública. Há um défice permanente na balança de transacções correntes com o exterior que tem sido financiado através de entradas de capitais vindos dos países mais ricos da zona euro. Os bancos alemães, franceses, holandeses e outros converteram os excedentes dos seus países em aplicações financeiras que canalizaram para os nossos bancos a fim de estimularem Estado, famílias e empresas a viverem do crédito. A pressão dos bancos comerciais sobre o governo para este requerer o financiamento da UE/FMI compreende-se
bem. Com o financiamento de Bruxelas, os bancos têm garantido o reembolso dos seus créditos ao Estado. Mais ainda, se a subida do crédito mal-parado vier a ameaçar a viabilidade de um ou mais bancos, eles sabem que terão um resgate assegurado à custa dos impostos dos cidadãos.
Assim, no caso de voltar a ser necessária a intervenção do Estado para salvar algum banco, os promotores da «Convergência e Alternativa» defendem o seguinte: imediata nacionalização do banco; garantia dos depósitos bancários até ao limite legalmente definido; conversão das obrigações e outros títulos de dívida do banco em acções do próprio banco; redimensionamento e reconversão do banco fazendo dele um instrumento de apoio às políticas de inovação empresarial e de apoio à exportação.
Quanto à dívida pública, o seu peso em percentagem do Produto, e a dinâmica insustentável que adquiriu nos últimos anos através dos défices primários, das exorbitantes taxas de juro em emissões de dívida nova, e da recessão ou estagnação da economia, obrigam-nos a dizer com clareza: o Estado português não tem condições para pagar toda a dívida registada nas contas do Eurostat, a que acrescem avultados compromissos vindouros decorrentes dos ruinosos contratos de Parcerias Público-Privadas.
No quadro de um processo negocial mais amplo para obter derrogações ao Tratado, Portugal deve abrir um processo de reestruturação da dívida pública. O primeiro passo será fazer uma auditoria para apurar os mecanismos que a originaram e quem são os seus detentores. Depois, deve abrir negociações com os credores externos tendo em vista substituir os actuais títulos de dívida por novos títulos com valor, prazo e juro mais favoráveis.
A orientação aqui defendida é a de uma negociação agressiva porque é a única que salvaguarda o interesse nacional e cria condições para o início de um processo de desenvolvimento do País. Os bancos espanhóis e os da Europa rica acabarão por aceitar negociar porque têm muito a perder se nos empurrarem para uma reestruturação unilateral. Ao contrário do que se diz na comunicação social, a ruptura com os mercados financeiros será breve se o País voltar ao crescimento económico. Os mercados financeiros têm memória curta
pois estão sob a imperiosa necessidade de encontrar aplicações para os avultados recursos que gerem.
3. Desemprego
Desde há muito tempo que Portugal mantém uma elevada taxa de desemprego, em grande parte de longa duração. Mas importa notar que há também milhares de desempregados, sem subsídio de desemprego ou outro apoio ao rendimento, que perderam motivação e não encontram fontes alternativas de subsistência. Estes são registados estatisticamente como inactivos, o que significa que, na realidade, o número de portugueses desempregados é muito superior ao revelado pela taxa de desemprego oficial.
O pleno emprego deve ser o objectivo central da política económica de um governo das esquerdas. No passado, para o alcançar o Estado adoptava uma política orçamental expansionista. O seu uso foi perdendo eficácia no que toca à criação de emprego e, por força da hegemonia do pensamento neoliberal, na UE a política orçamental está fortemente limitada pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. Hoje, num contexto de forte especulação sobre a dívida pública, um aumento da despesa pública para relançar a economia e criar
empregos enfrenta sérias limitações: as fugas do circuito económico através da aquisição de bens importados; expectativas pessimistas dos agentes económicos relativamente ao futuro levando-os a reter uma parte do rendimento em liquidez ou em activos reais; agravamento do défice público e sua repercussão na dinâmica da dívida.
Contudo, recorrendo a uma política de emprego de matriz Keynesiana, é possível contornar estas limitações através da criação directa de empregos públicos que satisfaçam necessidades sociais. Trata-se de lançar um programa de criação de empregos, dignos e socialmente úteis, através de uma agência pública que trabalhe em parceria com o sector empresarial, privado e público, e as organizações do sector social e solidário. Grande parte destes empregos extinguir-se-ão quando o sector privado recomeçar a criar empregos melhor remunerados.
O financiamento desta política de pleno emprego proviria da segurança social e de parte dos recursos habitualmente atribuídos ao investimento público. Dado que este tem um efeito incerto sobre o emprego, é preferível canalizar despesa pública para o financiamento de empregos socialmente úteis, a identificar com as autarquias, empresas locais e organizações sem fins lucrativos. Esta intervenção directa seria complementar de uma política de investimento público em projectos que garantidamente tenham um elevado conteúdo em
emprego, aumentem a eficiência energética do País, e promovam a competitividade da indústria.
Com esta estratégia de promoção do pleno emprego o País pode adiar, e reavaliar com o maior cuidado, os grandes projectos de investimento público em infraestruturas dado que são financeiramente onerosos, têm elevado conteúdo em importações, e o emprego que criam é sobretudo temporário.
4. Desigualdade e pobreza
Antes da crise, Portugal já era um dos países da UE com maior desigualdade na distribuição do rendimento e com uma elevada taxa de pobreza. As políticas de austeridade inevitavelmente agravam esta situação de partida. O número de pobres, empregados ou desempregados, aumentará nos próximos anos. A despesa pública de natureza social será vítima da vaga de austeridade que se avizinha. O País será confrontado com políticas económica e socialmente devastadoras que, paradoxalmente, não travarão o aumento do endividamento público.
Antes de mais, queremos assumir com clareza que as prestações sociais concedidas aos cidadãos não devem ser entendidas como uma esmola do Estado que é dada quando a família mais próxima não tem recursos. Segundo a Constituição da República Portuguesa, os cidadãos têm direitos sociais e, pelo menos desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, os direitos sociais são, tal como os direitos civis e políticos, direitos humanos fundamentais.
Em Portugal, as esquerdas estão convocadas a reduzir substancialmente a desigualdade na repartição do rendimento e a percentagem da população que é pobre. Num contexto de escassez de recursos, entendemos como tarefa prioritária realizar uma reforma fiscal que introduza elevada progressividade na tributação do rendimento e da riqueza – a quem mais tem aplicam-se taxas mais elevadas. Nesta reforma inclui-se um imposto especial sobre transacções financeiras e a normalização da tributação sobre os lucros dos bancos. Sabendo-se que a gestão focada no lucro de curto prazo prejudica a competitividade das empresas, propõe-se uma tributação fortemente progressiva das remunerações variáveis dos seus administradores. Tendo em conta que é preciso aumentar a eficiência fiscal, defende-se também uma alteração legislativa que permita o acesso ágil e transparente a contas bancárias sob investigação. Por outro lado, sendo necessário reduzir rapidamente a dívida pública, defendemos a proposta avançada por Miguel Cadilhe (Público, 16-04-2011) de um imposto sobre a riqueza, “uma colecta única, instantânea, toda ela consignada ao pagamento extraordinário de dívida pública.”
Também não esquecemos que a redução da desigualdade na distribuição do rendimento não se faz apenas através das prestações sociais. Ela tem de ser promovida desde logo na distribuição primária do rendimento nas empresas e outras organizações. Por isso, defendemos a alteração do Código de Trabalho para instaurar como regra a contratação colectiva de salários e condições de trabalho e para proteger a actividade sindical.
E agora?
Os signatários do presente documento lamentam que o PCP e o BE não tenham ousado avançar para as próximas eleições com uma grande coligação das esquerdas através da mobilização de activistas dos movimentos sociais e de personalidades diversas representativas de sectores progressistas da sociedade portuguesa. Esta falta de visão política é, do nosso ponto de vista, causadora de grande desânimo no eleitorado, e não apenas no que tradicionalmente vota à esquerda.
Entendemos também que não basta denunciar a submissão da actual direcção do PS às políticas de austeridade exigidas pelos mercados financeiros e pela UE. Sobretudo, é preciso que as restantes esquerdas aceitem iniciar um processo de convergência tendo em vista produzir uma alternativa política suficientemente credível para que, no futuro e sob pressão do eleitorado, o PS reconheça que tem um interlocutor com quem pode fazer um acordo político para tirar o País da crise.
Neste sentido, submetemos à consideração do PCP, do BE, e do PS, dos respectivos responsáveis mas também dos seus eleitores, as propostas acima enunciadas. Gostaríamos que elas fossem recebidas como sinal de uma genuína vontade de promover um diálogo franco e respeitador das diferenças entre as várias esquerdas. Com um único objectivo: através do diálogo e do debate alcançar uma convergência política que possa oferecer aos Portugueses uma forte alternativa de esquerda. Uma alternativa que mobilize as capacidades dos Portugueses e que lhes devolva a esperança de poder viver numa sociedade mais digna e mais justa. Da nossa parte, assumimos o compromisso de um empenhamento sem reservas para que esse objectivo seja alcançado.
Quem somos?MédiaA nossa organizaçãoContactos
Sem comentários:
Enviar um comentário