quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

SÓCRATES E CAVACO... comentário de Luís Fazenda




Sócrates-kamikaze, precipitando legislativas, entregaria o governo de bandeja... punido pelos mesmos sectores que ambicionam a estabilidade a qualquer custo.
Artigo de Luís Fazenda
1. Tem sido apontado o artificialismo das querelas entre Cavaco Silva e José Sócrates. Deve compreender-se que no vaivém dos vetos presidenciais, em matéria de direitos civis, autonomias regionais, assuntos militares e de segurança, confrontam-se protecções eleitorais do presidente e do primeiro-ministro. Ambos são candidatos a eleições, em continuidade e disponibilidade exclusiva. Falam para eleitorados potenciais. Na história da democracia portuguesa pós-Abril, nem a cena é inédita, basta recordar os mandatos presidenciais, nem prenuncia qualquer conflito institucional. A imprensa ávida de tomar a sub-frase e a picardia como "disputa de poder", pode comparar a "elegância" das relações entre presidentes e primeiros-ministros, só idos, Eanes e Soares, Soares e Cavaco Silva. A luta política não é mesmo um redondo vocábulo.

Ao que conta, Cavaco Silva e Sócrates convergem nas regras das finanças públicas, na legislação económica e social, na política interna europeia e na política externa pró-NATO, ou seja, no essencial da governação.

As guerrinhas das "escutas" e das propaladas "intrigas", são efeitos pacóvios de políticos medíocres. A "má moeda" anda por muito lado nestes dias...

Simplesmente, a cooperação estratégica prevista por Cavaco Silva não é uma coabitação. Chega-lhes um ponto de encontro.

2. Chama-se a atenção para o óbvio. Cavaco Silva tem eleições próximas, a um ano. Ganhou o seu primeiro mandato à tangente. Quer confederar a direita e somar votos ao centro. Os seus (dele) apelos ao compromisso podem cheirar a união nacional mas é ao bloco central que acende a vela. Com Papa por cá. Mas pergunta-se: e Sócrates não quer (ele) eleições antecipadas na primeira oportunidade que os prazos constitucionais lhe permitam? Por que o faria? Cavaco-candidato não lhe dá esse pretexto em nome da estabilidade e do expectável apoio de "classes médias". Sócrates-kamikaze, precipitando legislativas, entregaria o governo de bandeja... punido pelos mesmos sectores que ambicionam a estabilidade a qualquer custo. Fora das especulações jornalísticas sobra apenas um pouco surpreendente empate. Isto é: a evolução na continuidade.

3. Como vamos de bloco central? O PSD conspira com o Governo para esvaziar a luta dos professores, aprovam no Parlamento o processo de apaziguamento PSD/PS. O PSD viabilizou o segundo orçamento rectificativo de 2009, até com cheque à Madeira. O PSD já deixou cair bandeiras eleitorais como o alargamento do subsídio de desemprego, o fim da co-incineração, ou quaisquer outras que possam assemelhar-se às horríficas "coligações negativas", que o PS pinta com as cores do apocalipse. Mesmo na lei de finanças regionais, um míssil do PSD/Madeira, tenta o estado-maior laranja um acordo de governo. Ficará o código contributivo da segurança social suspenso por um ano - o que são trocos para o orçamento. E neste piscar de olhos aos nano-micros empresários, de meias com o CDS, nem sequer é certo o destino do "pagamento especial por conta" do IRC.

A líder do PSD, uma espécie de holograma político, tem estendido a mão. Já sublinhou, imagine-se!, que não a norteia o combate ao défice orçamental mas a redução do endividamento. A prioridade que (ela) preconiza de apoio ao sector exportador e, em geral, pela produção de bens transaccionáveis, choca-se com a canalização de crédito disponível para grandes obras públicas. Esta divergência, a substância do confronto eleitoral das últimas legislativas, reproduz ao nível político uma fractura existente na classe capitalista. A crise financeira internacional apertou em muito o acesso ao crédito. O governo salva a banca, e o crédito às construtoras e indirectos, grosso modo, e a torneira fecha-se a outras indústrias e serviços conexos. Este é o miolo do negócio entre partes, ou talvez não, se o pragmatismo do PSD se limitar a dar pavio ao PS, na expectativa de que queime alguma coisa para factura eleitoral.

O PSD, acossado por igual pretensão do CDS, quer negociar a viabilização do OE para 2010.

4. Tal como o PSD, o CDS quer averbar pontos no seu cartão. Tantos mais pontos quanto a estabilidade possa "parecer" obra das suas iniciativas. O Graal na direita é a busca pela recomposição partidária e por um programa fortemente conservador, uma demanda algures entre Sarkozy e Berlusconi. O CDS quer ser parceiro e não apenas sócio. A negociação do "caderno de encargos" do CDS junto de Sócrates dá-lhe tempo e espaço para exalar oxigénio quando a nuvem carbónica envolve o PSD.

Sócrates vai à boleia da direita. Assim é a proximidade de interesses, por muito que o mau génio das personalidades o tente apagar.

5. O que é grave é a dramatização de falsos cenários, a tragicomédia de hipotéticas eleições antecipadas em 2010, para ocultar na atenção da opinião pública o desemprego galopante, a santa aliança do código de trabalho contra os direitos laborais, o colapso dos impostos por fuga para off-shores, os negócios contra o Estado nas parcerias público-privadas, a permissividade com a corrupção onde qualquer sucata tem a alquimia do ouro.

O que é grave é que há milhares de milhões de euros para acudir ao capital, sob diversas formas, e o PS impede o alargamento do subsídio de desemprego, supostamente porque custaria 600 milhões ao erário, contas não confirmadas, para 300 mil vítimas da crise e respectivas famílias!

O que é grave é a continuidade das políticas liberais do Governo PS, sob o beneplácito da direita. A crise social agudiza-se, o fracasso está estampado no rosto e nos nervos do executivo. A fuga para a frente é o choque social - essa é a cafeína do ministro das finanças.

6. Ingénuos ou crentes, ou gente de má fé, há quem acuse a esquerda de não negociar com o Governo do PS. Retenho que algumas pessoas podem querer lavar a consciência do Governo, ou estipular um jogo táctico, nota-se por exemplo nos textos de Soares. É curioso, mesmo assim, que não tenham tocado campainhas quando Sócrates propôs coligação governativa, ou acordo parlamentar, a qualquer um e a todos. A direita percebeu o sinal. É curioso também que todos esses críticos nem sequer esboçaram uma exclamação quando o Executivo de Sócrates se recusou a discutir com o Bloco de Esquerda políticas concretas, leis concretas, medidas mais que concretas. A direita percebeu o sinal.

A verdade é que Sócrates quer clivar com os partidos à esquerda. Necessidade política é certo. Mas sobretudo por cálculo eleitoral, a bipolarização como chantagem pode ser o confisco dos votos à sua esquerda, pensa-se no Largo do Rato. A luta social e o desastre governativo vão porém ditar a onda contrária, a de castigo ao primeiro-ministro anti-esquerdas. O desemprego vai falar. São 700 mil pessoas.

7. Tem um toque de soberba, pouco sofisticado concede-se, quando o primeiro-ministro acusa o Bloco de Esquerda de "só" querer atacar o Partido Socialista. Na verdade o programa de governo (do qual deriva governabilidade, repare-se...) que o B.E. sufragou apresenta políticas de igualdade, medidas sociais, elementos de democracia na Europa, propostas de distensão e paz internacionais, que são incompatíveis com o programa do PS e de toda a direita, afinal com o arco do poder vigente, a ordem política subjugada ao mercado. As "sociais-democracias", as "terceiras-vias", tudo isso já lá vai. O liberalismo é mais ou menos extremado, às vezes os protagonistas confundem-se, basta olhar a cartografia europeia.

No auge da crise do capitalismo (2007-2009) tinha a sua graça assistir ao talante do PS reclamar do neo-liberalismo e das suas desgraças. Mais ou menos imitando os banqueiros que zurziam nos supervisores dos bancos centrais, tudo gente de parentela à puridade. Qualquer ilusão em que este PS é reformável esbarra com uma imparidade pior do que a que resultou dos activos tóxicos na (in)solvência dos bancos. Veja-se: é longa a lista de dirigentes do PS que nos últimos 20 anos participou activamente no modelo privatizador, a todos os níveis, de pequenas a grandes empresas, aos serviços públicos. Do Estado, da Região dos Açores, dos municípios.

A osmose empresarial do PS, em sentido político assim o friso, e para o caso chega, dita a sua política. Os negociantes do Estado não são os reformadores do Estado, para que pilote o mercado e combata a desigualdade.

8. No próximo debate orçamental 2010 o Bloco de Esquerda não se demitirá de levar a votos as reivindicações sociais de urgência e os meios fiscais correspondentes. Não nos intimida a pressão. Não cedemos aos ataques políticos e pessoais, dos mais mesquinhos, em que tem sido pródigo o partido governista. Contudo, convém aclarar um ponto: a teoria de que a Assembleia da República não pode alterar a proposta de orçamento do Governo, ou entre orçamentos não pode votar incidências nos orçamentos futuros, é completamente inconstitucional. É o Governo que depende do Parlamento e não o inverso. Mesmo com maioria absoluta, de um ou mais partidos apoiantes do Governo, a responsabilidade orçamental é sempre da Assembleia. Ainda mais, assim será quando estamos em presença de um Governo minoritário que quer torcer o veredicto popular. O Povo não confiou a maioria ao PS, ponto final. Chantagear o Parlamento, sob qualquer pretexto, não é um mero truque político, mas um golpe no regime democrático.

Luís Fazenda

27/12/09

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