sexta-feira, 2 de setembro de 2011

UMA AULA

Assunto: Memórias de uma aula






Teria celebrado ontem mais um aniversário, este professor diferente, que

deixou uma marca em Portugal, na Galiza, nos países lusófonos, enfim...

no Mundo


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Memórias de uma aula no Liceu de Setúbal



Barreiro, 4 de Outubro de 1967

(Quarta-feira)



Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com o pessoal a trocar

beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação que foram

3 meses e meio de férias. Estávamos todos fartos do verão, com

saudades uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no 1º andar

e cheirava a nova, tudo encerado e polido, apesar do material já ser

mais do que velho. Somos o 7.º A e como não chumbou nem veio ninguém

de novo, a pauta é exactamente igual à do ano passado. Eu sou o n.º

34, e fico sentada na segunda fila, do lado da janela, cá atrás, que é

o lugar dos mais altos.



Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos

um professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal,

dizem que veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política.

Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e

contente porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente

uma vaga ideia de ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não

sei se foi por causa da cantoria se por causa da política. A Inês

contou que ouviu o pai comentar, em casa, que o homem é todo

revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela diz

que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser

comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando

entrou na sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite

da falta. Entrou por ali a dentro, todo despenteado, com uma gabardine

na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:



- Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso mas enganei-me e fui

parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem atrasados também

não vos vou chatear

Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada

com a imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as

primeiras palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam

a cativar toda a gente. A Carolina virou-se para trás e disse-me que

já o tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o

rosto não me era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes

não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um

homem interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter

uns 36 anos e acho que sim, nota-se que já é velho. Depois das

primeiras palavras, sentou-se na secretária, abriu o livro de ponto,

rabiscou o que tinha a escrever e ficou uns cinco minutos, em

silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da sala,

impecavelmente limpas.



Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar

uns com os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo

conjecturas. Às tantas, o bichanar foi subindo de tom e já era uma

algazarra tão grande que parece tê-lo acordado. Outro qualquer

professor já nos teria pregado um raspanete, coberto de ameaças, mas

ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não se

importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto

esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se,

efectivamente, evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em

pé, em cima do estrado, já tinha ganho o primeiro round de simpatia.

Depois, veio o mais surpreendente:



- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo

dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano

passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.

Gargalhada geral.



- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas

disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não

tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma

matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui

desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em

palhaçadas.

Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele

ficou impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto,

calmo, simpático.



- Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas

absolutamente inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem

interesse. Não vou perder um minuto do meu estudo com esta porcaria.

Começámos a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinha

passado pela frente um professor com tamanha ousadia.



- Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse,

como noutros países acontece, não é esta fantochada que não passa de

pura teoria. Na prática não existe, é uma Constituição carregada de

falsidade. Portugal vive numa democracia de fachada, este regime que

nos governa é uma ditadura desumana e cruel.



Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o

sorriso e estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e

nas palavras daquele homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que

ouvimos comentar, todos os dias, aos nossos pais, mas sempre com as

devidas recomendações para não o repetirmos na rua porque nunca se

sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente como uma nuvem de fumo

branco, que se sente mas não se apalpa.



- Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho

leccionar, nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria.

Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque,

no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º

ano e poderem entrar na Faculdade. Isso, vocês tem que fazer. Estudar.

Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um

onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria

e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que

lutar por um novo país.



Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha,

basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale

nada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida,

mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão

ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que

nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão,

educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os

privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei.

Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela

nossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país,

carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou

abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade. Vou

ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses

de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e

cultural.



Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm

que ter notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do

vosso livro que terão que ter a paciência de estudar. A matéria é uma

falsidade do princípio ao fim, mas não há volta a dar, para atingirem

os vossos mais altos objectivos. Têm que estudar. Se quiserem copiar é

com vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem

trazer o livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que

devem começar a endireitar este país no sentido da honestidade, sim

porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas.

Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais

velhos, em qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que

mostrar o que somos, temos que ser dignos connosco para sermos dignos

com os outros. Por isso, acho que não devem copiar. Há que criar

princípios de honestidade e isso começa em vocês, os futuros homens e

mulheres de Portugal. Não concordam?



Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula.

Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido, sem palavras. Que

fenómeno é este que aterrou em Setúbal?

Já me esquecia de escrever. Esta ave rara, o nosso professor de

Organização Política, chama-se Zeca Afonso.

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