Está o PS comigo?”
Assim deu Sócrates o mote ao comício, perdão, ao Congresso do PS que hoje findou, no seu discurso inicial. Um reality show em que todos os actores desempenharam bem o seu papel, de acordo com um guião profissional, para um arranque da campanha eleitoral em formação unida e de combate. Com uma cobertura mediática contínua e ímpar em vários canais. Propaganda generosa, segundo uns. Mas também oportunidade, para os mais atentos e lúcidos, de ver como as palavras já não jogam com as práticas e os factos. Em qualquer caso, a assembleia magna de um partido determinante na política portuguesa.
Este comício do PS foi oportunidade para ver como uma parte da elite política (e económica) que desgraçou o país, que ocupou largamente a boca de cena, não se enxerga na sua mediocridade e apego ao poder. Preferindo antes continuar o eterno jogo de passa culpas com a outra parte dessa elite igualmente responsável (o PSD e afins), que saliva na sua ânsia de recuperar o seu quinhão de poder.
Os tais do “arco do poder”, que mais adequadamente se deveriam designar de bloco central de interesses e que, no meio de zangas e arrufos, com mais “consciência social” ou mais desfaçatez neoliberal, nos têm (des)governado, sempre prometendo “amanhãs que cantam” para depois do próximo aperto de cinto.
Apertos, mas não para todos. Ou não seríamos o país mais desigual da Europa onde os mais bem pagos, banqueiros, grandes gestores, académicos e comentadores do mainstream, vêm diariamente explicar-nos à televisão que somos um bando de preguiçosos que temos vivido à custa do erário público e do dinheiro alemão. Excepto eles, claro, as luminárias que nos conduzem pelo meio das trevas. Os que nos dizem que chegou a hora não só de apertarmos o cinto como de baixarmos as calças. Ou seja, de aceitarmos alegremente sermos um protectorado da Merkel e dos banqueiros alemães. Para nos imporem a “ajuda” que há-de proteger, não os portugueses, mas os credores.
A pergunta inicial de Sócrates, o quase unanimismo do aplauso incondicional da resposta e o culto do líder a remeter para paragens menos recomendáveis, resumem assim na perfeição um congresso de onde esteve ausente o debate verdadeiro dos problemas do país e o exame crítico e autocrítico da governação socialista.
Quase todos, mesmo os que no passado criticaram a governação socrática dos códigos de trabalho, da degradação dos serviços públicos de saúde, das privatizações sem rei nem roque, se uniram agora. Uns certamente rendidos à devoção calculista pelo poder. Outros, façamos-lhes ainda justiça, por julgarem Sócrates o mal menor e por isso se submeterem ao curso das coisas no seu partido. Um ou outro trazendo ainda, com discrição e sem grande polémica, a memória crítica das negociatas das parcerias público-privadas e outros feitos de uma governação socrática que competiu com o PSD/CDS e com a governação cavaquista na luta pelo primeiro lugar na fusão entre poder político e grandes interesses económicos.
Um parêntesis para anotar uma curiosidade. É interessante ver que há muito tempo que os dirigentes do PS e alguns politólogos de serviço deixaram de criticar a qualidade democrática dos congressos e do funcionamento interno do PCP. Durante anos, esse tema serviu-lhes de contraponto para defenderem a normalização e padronização do funcionamento dos partidos (lembram-se da lei dos partidos?), para defenderem as eleições directas dos líderes partidários (solução agora caída novamente em desgraça). Porque acabou essa onda? Porque o PCP mudou, ou porque afinal os proclamados princípios não passavam de expedientes de circunstância do debate político?
De facto, um congresso do PCP ou uma convenção do Bloco de Esquerda, em comparação com este congresso do PS, são modelos de participação, de pluralismo e de profundidade no debate político. E não são. Mas têm a substância política que aqui não se viu, limitada apenas à afinação de uma cassete de mobilização eleitoral, encenada com muito profissionalismo e vastíssimos recursos que só a longa permanência num poder político assim permite obter.
Ao ver este Congresso, ou os Congressos do PSD e também do CDS, percebe-se logo tudo.
A degradação do funcionamento interno dos partidos, da qualidade da sua reflexão e do seu debate político, a concentração de poderes no líder e na oligarquia que o rodeia, atingiram tais proporções que seria inconveniente e incómodo recuperar para o espaço público o debate sobre a democracia interna dos partidos. Saíam todos mal na fotografia.
Rende mais agora, em tempos de crise, de acordo com uma lamentável tradição sebastianista lusitana (que diabo, também temos vícios), cultivar a unanimidade em torno do líder providencial investido de poderes absolutos e de uma determinação messiânica de defender o “interesse nacional”. Enquanto essa figura tutelar (por boas e por más razões) do PS, Almeida Santos, nos vai explicando tranquilamente que toda esta algazarra comicieira faz parte do jogo eleitoral e que depois das eleições os partidos (está-se a ver quais) vão entender-se.
Como Almeida Santos resumiu com o saber da sua experiência feito, com bonomia e cinismo, nesses seus comentários à imprensa, os partidos “têm que fazer pela vida” e “adequar” o seu discurso, porque ”neste momento os partidos querem ganhar votos e o resto do interesse do país às vezes fica para segundo plano em vésperas de eleições” (sic!!!).
As declarações deste patriarca do PS sintetizam toda a tragédia da política portuguesa e de uma elite político-económica incapaz, responsável principal pelo desgoverno nacional que tem vindo a descaracterizar a democracia política e que a tem esvaziado quase desde o seu nascimento. Ao ponto de o futuro do país hoje ser despudoradamente decidido em negociações secretas com funcionários do FMI e do BCE ou em reuniões de banqueiros que ditam publicamente as suas exigências e conclusões. Enquanto a democracia representativa faz figura de notário ou avalista.
Manifestando-se (alguns) como republicanos, laicos e socialistas, há muito esqueceram o significado real desses conceitos. Tornaram as campanhas eleitorais em campeonatos de promessas e ilusões (depois desmentidas e ignoradas na governação). Converteram os seus partidos (responsáveis, pois claro, e do “arco da governação”) em oligarquias de interesses sem projecto. Usam o profissionalismo e a carreira política, não como o serviço público que propagandeiam, mas como gestão de interesses numa política convertida em “mercado” e comandada pelos “mercados”.
Assim vão colaborando na degradação da democracia e da busca incessante que esta representa de um equilíbrio incerto entre liberdade e igualdade. Enquanto vão deixando cair uns piedosos lamentos pela ascensão da extrema-direita noutras paragens. Prometendo sempre que por cá governam guiados pelo superior “interesse nacional” de permitir a acumulação anual de lucros fabulosos aos bancos e grandes grupos protegidos, enquanto cortam nos salários, nas prestações sociais, na saúde pública e se carrega nos impostos sobre a população. Porque a suposta racionalidade dos mercados exige sempre e sempre o ajustamento em favor do capital e contra o trabalho. Esquecendo que a história, como disse Marx no século XIX, se repete sempre, primeiro como tragédia (lembram-se da tragédia da I República e da ditadura fascista que se lhe seguiu?), e agora, se deixarmos, como farsa.
Precários nos querem, Rebeldes nos terão!
São os partidos todos iguais? São os “políticos” todos assim? Não são. Mas assim são a maioria dos que até aqui nos trouxeram.
E daqui para diante? E os comuns que vieram para a rua em 12 de Março? E o povo, pá?
Vamos deixar que a política, a governação da cidade e do bem público, continue a ser apropriada deste modo por uma oligarquia que a todos nos usa e cada vez mais está distante de nós? Teríamos então de concluir que o país tem o poder e as elites que merece. Seria a “piolheira” que alguns escritores do século XIX descreveram. Não é!
Ou vamos elevar o protesto social e ao mesmo tempo juntar forças à esquerda para construir uma real alternativa de governação, que saiba repartir melhor a riqueza, distribuir com mais justiça os sacrifícios e restaurar a saúde do contrato social da democracia? Sem medo da Sra. Merkel, do BCE e dos que, com as suas receitas, estão a afundar a Grécia e a Irlanda e, de caminho, estão a meter água no barco da União Europeia.
Afinal, vamos levantar a cabeça como os islandeses, ou baixar a cerviz perante os mercados financeiros?
“Não há soluções de esquerda sem o PS ou contra o PS” – afirmou Manuel Alegre no discurso no Congresso do seu partido. Intervenção que foi, aliás, uma das poucas declarações no evento com conteúdos coerentes e programáticos de esquerda.
Certamente que os socialistas são parte desejada de uma grande convergência à esquerda.
Mas convergência para governar assim? Sem mudança de rumo? Com um partido que pela voz do seu líder – que, tal como o outro, também raramente se engana e nunca tem dúvidas -, depois de com o PSD ter metido o país neste buraco, afirma querer continuar pelo mesmo caminho? E que põe os seus oligarcas a preparar o day after, avisando que a solução, depois da refrega eleitoral, é o entendimento com os partidos do arco do costume?
Então, mas o PS não tem que fazer uma parte do caminho para um compromisso que se baseie numa mudança de rumo, tal como as outras forças à esquerda têm também que fazer a sua parte e juntar à resistência a vontade, a capacidade e o risco de propor e governar? E os próprios socialistas, ou uma parte deles, não têm que lutar por isso? Ou Manuel Alegre também acha que, de PEC em PEC, salvamos o país e a União Europeia deste naufrágio? Ou que todos, partidos à esquerda do PS, muitos cidadãos à esquerda sem partido, sindicatos, movimentos do precariado e jovens que convocaram a manifestação de 12 Março, temos que nos amarrar ao “interesse nacional” pregado na versão Sócrates, que aliás muda erraticamente quase todos os dias, embora sempre com um rumo certo – forte com os fracos, fraco com os fortes?
É tempo de um grande sobressalto cívico à esquerda. Que se converta em acção e em propostas alternativas construídas na base de um amplo movimento cidadão, transversal e plural de debate das políticas e do diálogo inter-partidário.
Certamente votando contra os partidos que se ufanam de constituir o “arco do poder” (melhor se diria o “arco dos interesses”). Certamente dialogando muito à esquerda, socialistas incluídos, e fazendo disso um processo determinado e não meramente eventos sem consequências para sossegar e aproveitar pulsões unitárias. Mas também sem submissão a calendários eleitorais de curto prazo, construindo de modo transparente, com alicerces sólidos e participados a alternativa plural que faz falta, e outros modos de fazer política. Em que a moral não pode estar ausente, nem da política, nem da economia, para desgosto dos que gostam de fazer de pequenos maquiavéis redutores do pensamento de um grande precursor da ciência e da teoria políticas.
Os discursos do Congresso do PS podem servir de lenitivo para o interior de um PS embalado no discurso da resistência ao invasor e que de repente ficou confrontado com a invasão (a dita “ajuda”) externa solicitada pelo seu próprio líder. Todavia, a realidade crua vai impor-se de novo no dia seguinte. Na terça-feira chega a Portugal a delegação da UE, do BCE e do FMI para preparar o seu diktat a Portugal. E até 15 de Maio, três semanas antes das eleições, o programa dos credores é suposto ser aprovado pelos partidos dos PEC. Assim o determinou quem julga mandar no país. Então, nenhum discurso do Sócrates poderá disfarçar as responsabilidades próprias na conversão de Portugal num protectorado alemão para garantia dos credores e nosso sacrifício. E aos socialistas cujo coração bate à esquerda será exigido mais do que aquilo que se viu neste Congresso.
Entretanto, como cantam Sérgio Godinho e José Mário Branco, e são também sinais esperançosos dos tempos, há “uma força a crescer-te nos dedos e uma raiva a crescer-te nos dentes. Não me digas que não me compreendes”…
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